Exoneração do passivo restante - causas de indeferimento liminar nas diversas alineas do art. 238.º do CIRE - ónus da prova


Exoneração do passivo restante – causas de indeferimento liminar nas diversas alineas do art. 238 do CIRE – ónus da prova.

O procedimento de exoneração do passivo restante, introduzido na nossa legislação pelo CIRE (aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18 de Março, e objecto de sucessivas alterações), corresponde à Discharge na lei norte americana e à Restschuldbefreiung da lei alemã[1] traduzindo uma ideia de “fresh startem que ocorre a extinção das dívidas e a libertação do devedor por forma a que este não fique inibido de começar de novo e poder retomar a sua actividade económica.
Como referem Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, a filosofia do fresh start encara o sobreendividamento como um risco natural da economia de mercado, particularmente associada à expansão do mercado do crédito – o crédito é uma actividade que se faz com risco e, por isso, o sobreendividamento é um risco antecipado e calculado pelos credores: “o consumidor que ousa recorrer ao crédito e é mal sucedido não deve ser, por isso, excessivamente penalizado e, sobretudo, não deve ser excluído do mercado por um tempo demasiado longo.[2]
O art. 235º do CIRE (Código a que pertencerão todas as disposições citadas sem menção de origem), atribui, ao devedor que seja uma pessoa singular, a possibilidade de lhe vir a ser concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
Ou seja, em linguagem comum, como afirma Assunção Cristas, “apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente[3].
Trata-se, assim, de uma “versão bastante mitigada”[4] do modelo do fresh start, na medida em que, a seguir à liquidação, decorre um “período probatório” de cinco anos, durante o qual o devedor deverá afectar o seu rendimento disponível ao pagamento das dívidas aos credores que não foram integralmente satisfeitas no processo de insolvência, Só depois de decorrido tal período e se a sua tiver sido exemplar, poderá o devedor requerer a exoneração, obtendo, assim, o remanescente não pago.
A exoneração constitui uma medida de protecção do devedor, embora as suas maiores vantagens tenham um alcance mais geral: constituindo um estímulo à diligência processual do devedor, permite uma tendencial uniformização dos efeitos da declaração de insolvência (entre a insolvência de uma sociedade comercial e a de qualquer outra pessoa jurídica), produzindo um efeito positivo na economia pela restrição que acarreta na concessão de crédito[5].
O instituto da exoneração do passivo restante, encontra-se configurado no CIRE, da seguinte maneira:
O
procedimento apresenta dois momentos de apreciação distintos por parte do tribunal – um despacho inicial que incide sobre a sua admissibilidade (despacho de indeferimento liminar ou “despacho inicial” a determinar o prosseguimento – arts. 238º e 239º) e a decisão (final) de exoneração (art. 244º).
O despacho liminar destina-se a aferir da existência de condições mínimas para aceitar o requerimento contendo o pedido de exoneração, sendo que o juízo de mérito em causa não é sobre a concessão ou não da exoneração (análise que só será efectuada passados cinco anos), mas em aferir o preenchimento de requisitos, substantivos, que se destinam a perceber se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe
seja dada [6].
E, como refere Luís Manuel Teles de Menezes Leitão[7], o despacho inicial não representa qualquer decisão relativamente à concessão da exoneração do passivo restante, representando apenas a passagem a uma nova fase processual, denominada período de cessão, onde o devedor é sujeito a determinadas exigências durante cinco anos, findos os quais o juiz tomará decisão final sobre a concessão ou não da exoneração (art. 244º).
O art. 236º do CIRE estabelece quais os requisitos a que deve obedecer o requerimento do devedor de
exoneração do passivo restante:
- tal pedido deve ser feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10
dias após a sua citação (n.º1 do artigo 236.º);
- do requerimento terá de constar expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes (nº3 do art. 236º).
O despacho de indeferimento liminar encontra-se regulado no art. 238º e pode fundamentar-se em razões de ordem formal ou processual (apresentação fora de prazo – al. a) do nº1, do art. 238º) ou em razões de ordem material ou substantiva (mérito ou comportamento do devedor – alíneas b) a g), do nº1 do art. 238º).
O art. 238º estabelece, nas diversas alíneas do seu nº1, os fundamentos que determinam indeferimento
liminar do pedido de exoneração:
a) For apresentado fora do prazo;
b) O devedor, com culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas (…);
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início
do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido da sua apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência com prejuízo em qualquer dos casos para os credores (…);
e) Constarem já do processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador de insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art. 186º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos ns arts. 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração de insolvência ou posteriomente a tal data;
f) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.
Ora, do teor literal de tal norma resulta, desde logo, que é a verificação de qualquer uma das circunstâncias aí descritas que importa o indeferimento liminar[8], ou seja, é a prova da verificação de qualquer um dos circunstancialismos previstos no art. 238º que leva à aplicação de tal norma, conduzindo ao indeferimento liminar (as circunstâncias descritas nas diversas alíneas não se mostram configuradas como requisitos de admissibilidade do pedido, mas como factos que, a verificar-se, afastam, desde logo, a aplicação do instituto).
Como tem vindo a ser defendido pela jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça[9], as diversas alíneas do nº1 do art. 238º, estabelecendo os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, não constituem factos constitutivos do direito do devedor a pedir esta exoneração, constituindo, antes, e pelo contrário, factos impeditivos desse direito, cuja prova compete ao administrador de insolvência e aos credores, nos termos do nº2 do art. 342º do CC.
Como tal, ao contrário do que tem vindo a ser assumido nalguma jurisprudência[10], em sede de despacho liminar, não impende sobre o insolvente o ónus de alegação e da prova de que agiu com lisura.
Quanto ao conteúdo e requisitos a que deve obedecer o pedido do devedor, o nº3 do art. 236º do CIRE, apenas exige que, no requerimento de apresentação à insolvência, o devedor pessoa singular que formule o pedido de exoneração do passivo restante, nele faça constar expressamente a declaração de que preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes[11].
[1] Tal modelo é expressamente referenciado no ponto 45 do Preãmbulo do Dec. Lei 53/2004, que aprova o CIRE;
[2] Cfr., “Regular o Sobreendividamento”, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações sobre o Anteprojecto de Código”, Ministério da Justiça – Gabinete de Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, pág. 89.
[3] Cfr., Assunção Cristas, “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, in THEMIS 2005, Edição Especial, “Novo Direito de Insolvência”, Almedina, pág. 167.
[4] Na expressão de Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, e por comparação com alguns ordenamentos jurídicos como o norte-americano e, em certa medida, o inglês, concedem um perdão imediato e incondicional do remanescente em dívida – cfr., estudo citado, pag. 94.
[5] Cfr., neste sentido, Catarina Serra, obra citada, pag. 133 e 136 e 137.
[6] Cfr., neste sentido, Assunção Cristas, Exoneração pelo Devedor Pelo Passivo Restante", estudo publicado in THEMIS, Rev. da Fac. Direito da UNL, 2005, Ed. Especial, "Novo Direito da Insolvência", pag. 169 e 170.
[7] Direito da Insolvência”, Almedina 2009, pag. 310.
[8] No sentido de que a verificação dos elementos impeditivos é que tem de ser trazida ao processo e de que a sua ausência levará ao deferimento do pedido, aponta muito especialmente a alínea e) da citada norma.
[9] Cfr., neste sentido, Acórdão de 21-10-2010, relatado por Oliveira Vasconcelos, Acórdão de 06-07-2001, relatado por Fernandes do Vale, e Acórdão de 24.01.2012, relatado por Fonseca Ramos, disponíveis in http://www.dgsi.pt/jstj.
[10] Jurisprudência que se apoia na afirmação de Assunção Cristas de que para que o juiz profira despacho inicial é necessário que o devedor preencha determinados requisitos de ordem substantiva, entre os quais faz incluir o bom comportamento anterior ou actual do devedor, pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa-fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência – “Exoneração do Passivo Restante”, local citado pag. 170.
[11] E, segundo Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, em face do que resulta do art. 238º, aí sim, justifica-se que, “sendo omissas essas indicações o juiz profira despacho de aperfeiçoamento, cujo cumprimento implicará o indeferimento do pedido por falta de requisitos essenciais, cabendo aplicar analogicamente o art. 27º, nº1, al. b), do Código” – “Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, QUID JURIS, Lisboa 2008, pag. 780, nota 6, anotação ao artigo 236º.

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