Liquidação dos bens da massa insolvente - Acórdão do TRP - 29.05.2014
615/11.1TBVNG-D.P1 |
JTRP000
ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
LIQUIDAÇÃO DOS BENS DA MASSA INSOLVENTE
RP20140529615/11.1TBVNG-D.P1
29-05-2014
UNANIMIDADE
S
1
APELAÇÃO
CONFIRMADA
3ª SECÇÃO
I - No âmbito do CIRE, não cabe reclamação para o juiz das irregularidades cometidas pelo administrador no decurso das diligências para liquidação dos bens da massa insolvente, especialmente por um terceiro interessado na aquisição dos bens.
II - Na venda dos bens onerados com garantias reais a favor de um credor, este goza da faculdade de após a ultimação das diligências para a venda propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada, não constituindo o exercício dessa faculdade e o cumprimento da mesma pelo administrador qualquer abuso de direito.
Recurso de Apelação
Processo n.º 615/11TYNVG-D.P1 [Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia]
Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I.
No processo de insolvência da sociedade B…, S.A., foi realizada a apreensão de um prédio misto composto por casa e terrenos, denominado por “C…”, sito na …, da freguesia de …, concelho de Terras do Bouro.
No decurso das diligências para venda desse bem foram sendo apresentados nos autos diversos requerimentos pelo interessado D… relativamente às diligências que estavam a ser realizadas.
Finalmente, em 13.01.2014, foi proferido nos autos o seguinte despacho:
“Decorre do disposto no artigo 163.º do CIRE que «A violação do disposto nos dois artigos anteriores (cfr. artigos 161.º e 162.º do CIRE) não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte».
Assim, mesmo a ter-se por violado o disposto nos artigos 1610 e 162.º do CIRE tal não contenderia com a validade do acto. Ora, a situação relatada nos autos pelo Interessado D… a ter-se por assente não assume a gravidade das violações a que aludem os dois referidos preceitos legais e não contende, sequer, com a eficácia do acto em causa.
Manifestamente, a solução legal adoptada privilegia a tutela daqueles que negoceiam com o administrador, mesmo que à custa dos interesses dos credores. Ter-se-á querido acolher neste domínio uma solução que se aproxima da prevalecente em matéria de vinculação de sociedades de responsabilidade limitada (cfr. Artigos 260.º e 409.º do CS.Com.), a benefício da fluidez e segurança do tráfico jurídico.
Assim, no caso em apreço, atento o disposto no referido preceito legal e a sua manifesta abrangência constata-se que mesmo a ter ocorrido a inobservância a que alude o interessado D…, a mesma não prejudica a eficácia dos actos do administrador de insolvência, atento o seu particular cariz. Aliás, é, inclusive, mais favorável aos interesses da massa insolvente.
Face ao exposto, indefere-se a pretensão formulada por D….”
Do assim decidido, a interessado requerente interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões[1]:
A. Durante a fase de negociação particular, o recorrente enviou, em 27.05.2013, ao Sr. Administrador de Insolvência, o Dr. E…, uma proposta de aquisição do imóvel supra mencionado, no valor de € 130.000,00 (cento e trinta mil euros).
B. Não tendo o Sr. Administrador de Insolvência proferido, nunca, qualquer resposta quanto à proposta apresentada.
C. Devido à ausência de notícias, o recorrente contactou telefonicamente o escritório do Dr. E…, com o intuito de obter uma resposta à proposta por si apresentada.
D. Tendo sido informado, pela Dra. F…, de que o imóvel – identificado no ponto 2 – seria vendido em leilão público, a realizar no dia 17 de Julho de 2013, pelo preço base de licitação de € 149.500,00.
E. Provido de tal conhecimento, o recorrente, em 17.06.2013, apresentou nova proposta de compra do imóvel em apreço, pelo montante de € 149.500,00 (cento e quarenta e nove mil e quinhentos euros).
F. Em 12.07.2013, o Dr. E…s respondeu à última proposta apresentada, referindo que “o credor hipotecário (G…, SA.) apresentou uma proposta de valor superior, isto é de 149.500,01€.”
G. Perante tais factos, em 15.07.2013, o recorrente remeteu nova proposta ao Sr. Administrador de Insolvência, novamente por correio registado, para o domicílio profissional do mesmo – …, .., ..º, Sala …, ….-… Porto –, desta vez pelo valor de € 149.550,00 (cento e quarenta e nove mil quinhentos e cinquenta euros).
H. No dia 17 de Julho de 2013, o leilão público de venda do imóvel, promovido pela H…, S.A., ocorreu no I… – …, …, em Braga.
I. Sendo certo que nenhuma proposta foi apresentada, à excepção da proposta apresentada pelo recorrente, na pessoa da sua mandatária, pelo valor de € 135.000,00 (cento e trinta e cinco mil euros).
J. Tendo inclusive emitido um cheque-caução à ordem da H…, S.A., no montante de € 5.000,00.
K. Sendo que quanto à proposta apresentada em leilão, o recorrente, novamente, nenhuma resposta obteve.
L. Até ao dia do leilão o imóvel foi anunciado e publicitado, pela leiloeira, com o valor base de licitação de € 149.500,00. Contudo,
M. No dia do leilão, tal foi alterado para € 159.296,00, ao qual acrescia a comissão da leiloeira e respectivo IVA.
N. Facto que o recorrente desconhecia e estranhou, mas que segundo o Sr. Administrador de Insolvência, se justifica pelas indicações dadas pelo credor hipotecário.
O. Salvo o devido respeito, permita-nos discordar, pois o credor hipotecário, na pessoa do seu mandatário, é claro ao referir, em 10/07/2013 – e-mail enviado ao Dr. E… –, que o imóvel deve ser adjudicado a quem apresente proposta superior a € 159.296,00 (por forma a que, abatida da comissão da leiloeira e respectivo IVA, proporcione à massa um valor não inferior ao da proposta do G…), sublinhado nosso.
P. Para se cumprir o mencionado pelo credor hipotecário, teria de se verificar uma de duas situações, ou o imóvel era apresentado no leilão público, com valor base de € 149.500,01 (ao qual acrescia a comissão da leiloeira e respectivo IVA, a suporta pelo adquirente), ou o imóvel teria de valor base de licitação € 159.296,00, mas nenhum outro valor acrescia, para o adquirente, na venda em leilão.
Q. Sucede que, no leilão de 17/07/2013, o imóvel foi colocado à venda com o valor base de licitação de € 159.296,00, ao qual acrescia a comissão da leiloeira e respectivo IVA.
R. É facto irrefutável que o credor hipotecário aceita uma proposta de compra do imóvel que proporcione à massa um valor de pelo menos €149.500,01 (valor da proposta apresentada pelo G…).
S. O Sr. Administrador de Insolvência, na nossa humilde opinião, desde 10/07/2013, que tinha a obrigação de aceitar a proposta de compra do recorrente no montante de €149.550,00, porquanto o credor hipotecário já tinha aceitado a venda pela quantia de €149.000,01.
T. Tendo em conta a ausência de resposta às propostas apresentadas, o recorrente, em 05/09/2013, apresentou no douto Tribunal “ a quo” um primeiro requerimento a solicitar a aceitação da proposta apresentada, bem como a marcação da escritura pública de compra e venda do imóvel denominado por “C…”.
U. Tendo o Sr. Administrador de Insolvência, Dr. E…, em 11/09/2013, pronunciando-se sobre a proposta apresentada em 15/07/2013, através de e-mail enviado à mandatária do recorrente, ou seja 53 dias depois,
V. onde comunica de que foi apresentada nova proposta de compra do imóvel, no montante de € 152.000,00 (cento e cinquenta e dois mil euros) e que teria o prazo de10 dias para apresentar nova proposta.
W. A nova proposta foi apresenta pela sociedade comercial J…, Lda. titular do NIPC ………, com sede na Rua …, …., …, …. – … … (Paredes), e objecto social a compra, venda e troca de bens novos e usados provenientes de vendas judiciais e leilões, compra e venda de veículos automóveis.
X. Inconformado com tal situação, uma vez que, em nosso entendimento, é inadmissível, no âmbito de um processo de insolvência, que 53 dias depois da apresentação de uma proposta de compra do imóvel, o Sr. Administrador de Insolvência venha notificar o recorrente de que existe uma nova proposta, até porque, conforme já mencionamos o credor hipotecário já tinha aceitado o montante proposto pelo recorrente, efectuou novo requerimento aos autos.
Y. Juntamente com tal requerimento, efectuou nova proposta de compra do imóvel, no montante de € 152.100,00 (cento e cinquenta e dois mil e cem euros), sob a premissa e apenas em caso de indeferimento do requerido ao douto tribunal “a quo”.
Z. No seguimento desta nova proposta e, segundo o Dr. E…, para resolver a questão da venda do imóvel definitivamente, o mesmo apresentou um requerimento, onde deu conhecimento ao douto Tribunal “a quo” de que o recorrente apresentou uma nova proposta no valor de €152.100,00, bem como que, e passo a citar “após conferenciar com o Ilustre Mandatário do credor hipotecário e por sugestão deste, foi decidido marcar dia e hora para ambos os interessados (D… e a J…, Lda.) licitem entre si a aquisição do imóvel.”
“Face ao exposto, informa-se V. Exa. que os interessados supra referidos já foram notificados de que se encontra designado o dia 30/10/2013, pelas 17 horas, no escritório do signatário sito no Porto para a realização da licitação do imóvel em causa, a fim de se obter um resolução definitiva sobre a questão da venda do imóvel.” (sublinhado e negrito nosso).
Sucede que,
AA. A licitação, nos termos em que foi definida, não se realizou, porquanto o representante da J…, Lda. não compareceu.
BB. E por sua vez, compareceu o mandatário do credor hipotecário G…, S.A., o Ex.mo Senhor Dr. K…, o qual e em representação do G…, S.A. apresentou uma proposta de aquisição do imóvel no valor de € 243.000,00 (duzentos e quarenta e três mil euros).
CC. Proposta essa que foi de imediato aceite.
AS RAZÕES DO NOSSO DESACORDO
DD. No douto despacho do Tribunal “a quo” foi analisada a violação dos artigos 161.º e 162.º do CIRE, tendo-se entendido que mesmo a haver violação de tais preceitos legais, segundo o artigo 163.º do mesmo diploma, tal não prejudica a validade dos actos do administrador de insolvência, até porque a nova proposta é mais favorável aos interesses da massa insolvente.
EE. Salvo o devido respeito, que o douto despacho do Tribunal “a quo” merece e contempla, não podemos concordar com tal entendimento.
FF. Não obstante as ausências de pronúncia que o Senhor Administrador demonstrou, perante as propostas apresentadas pelo recorrente, ocorreram irregularidades, supra descritas, que não podem deixar de ser tidas em conta. Entre as quais: Leilão público de venda do imóvel
GG. Conforme acima de descreveu o imóvel foi publicitado pela H…, até ao dia do leilão, com o valor base de licitação de € 149.500,00.
HH. No dia do leilão, o valor foi alterado para € 159.296,00.
II. Situação que até hoje continua por explicar e que configura, sem margem para dúvidas, uma nulidade de tal ato.
Proposta apresentada pelo recorrente em 15/07/2013 no montante de € 149.550,00
JJ. Consta dos autos que o credor hipotecário, na pessoa do seu mandatário, em 10/07/2013, via e-mail, encaminhou para o Senhor Administrador de Insolvência uma proposta de compra do imóvel no montante de € 149.500,01, tendo informado ainda, que aceita a venda do imóvel desde que tal proposta de compra do imóvel proporcione à massa, um valor nunca inferior ao da proposta por si apresentada, ou seja, de pelo menos €149.500,01 (valor da proposta apresentada pelo G…).
KK. Pelo que, ouvido o credor com garantia real sobre o bem a alienar, o Dr. E…, enquanto Administrador de Insolvência, e porque a proposta do recorrente cumpre o montante estabelecido, tem obrigatoriamente de proceder à alienação e promover a competente escritura pública.
LL. Acontece que, não só não foi alienado o bem, como, 53 dias depois decorridos da data em que o recorrente apresentou a sua última proposta, surge uma nova proposta de compra do imóvel.
MM. A qual só pode ser considerada extemporânea.
NN. Uma vez que, com o conhecimento das condições de venda, estabelecidas pelo credor hipotecário, a proposta do recorrente está automaticamente aceite, conforme os ditames do negócio jurídico, artigo 217.º e ss do Código Civil.
OO. Assim, o e-mail enviado ao Senhor Administrador de insolvência – pelo credo hipotecário – configura uma resposta de aceitação ao valor proposto de recorrente.
Diligência dia 30 de Outubro
PP. No nosso, mui humilde entendimento, a licitação agendada para o dia 30 de Outubro de 2013 tinha, apenas e só, como licitantes o recorrente e a J…, Lda.
QQ. Caso assim não fosse e para que se realizasse tal diligência aberta a quaisquer outros interessados, que não os inicialmente previstos, teriam de ter corrido as competentes publicações e dado o conveniente conhecimento público.
RR. O G…, S.A., não obstante figurar nos autos, como credor hipotecário, apresentou a sua proposta de aquisição enquanto licitante, interessado na compra do imóvel.
SS. Não é admissível que o credor hipotecário, com o intuito de encontrar uma resolução definitiva para a venda do imóvel, proponha uma licitação – conforme requerimento do senhor administrador de insolvência –, apenas entre o recorrente e a J…, Lda., ou seja, restrita à apresentação de novos interessados, e que, TT. no dia em questão, venha o G…, S.A. apresentar uma nova proposta de aquisição do imóvel, arrogando-se com tal legitimidade por ser também o credor hipotecário.
UU. Situação que só por absurdo se poderia aceitar, porquanto a posição de credor hipotecário e de licitante são posições que não se podem nunca confundir, sob pena de estar a cometer "venire contra factum proprium".
VV. E que violaria os princípios da boa-fé e dos bons costumes, que qualquer negócio jurídico tem de assentar.
WW. Pelo que entendemos que deve ser dado como assente, e contrariamente ao que foi defendido no douto despacho do Tribunal “a quo”, que não se trata de falta consentimento para a alienação, mas sim de diversas anomalias, ocorridas durante todo o processo de venda, conforme supra se expôs, que pela sua gravidade configuram a nulidade da alienação efectuada ao G….
XX. Bem como pelo facto de a proposta do recorrente, no valor de €149.550,00, ter-se por aceite, tendo em conta a aceitação negocial demonstrada pelo e-mail do credor hipotecário, na pessoa do seu mandatário, em 10/07/2013.
A estas alegações respondeu o credor G…, S.A. defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. Atendendo aos factos constantes nos presentes autos, o douto despacho recorrido, ao decidir como decidiu, não merece qualquer censura ou reparo.
2. Na venda judicial, por propostas em carta fechada, pelo valor mínimo de € 322.500,00, marcada para 16.04.2012, não foi apresentada qualquer proposta, pelo que se ficou a aguardar a venda por negociação particular.
3. Poucos dias antes, tinha já ocorrido uma tentativa de torpedear a diligência de venda com a invocação de um suposto contrato de arrendamento do imóvel, alegadamente celebrado em 2006, pelo qual os donos do imóvel à altura – L… e M… – o teriam dado de arrendamento contra o pagamento de uma renda mensal de €300,00, não obstante tratar-se de uma quinta construída cerca de 10 anos antes, com um terreno envolvente de 15.800m2 e piscina com 80m2.
4. O referido L… era de resto o administrador único da insolvente quando esta foi constituída, como também decorre da certidão comercial junta com o requerimento de 03/05/2012 acima referido.
5. E transferiu o aludido bem do seu património pessoal para o da B…, antes de ser declarado insolvente no Proc.9033/10.8TBVNG, que correu termos pelo 6º Juízo Cível de Vila Nova de Gaia.
6. Passando entretanto a B… a ser formalmente administrada por uma N… com os mesmos apelidos do pretenso arrendatário, O…, pelo que será com toda a probabilidade sua familiar.
7. Tudo circunstâncias para que oportunamente se chamou a atenção do Tribunal e que levaram inclusivamente à extracção de uma certidão par a fins de apuramento de eventual ilícito criminal.
8. Em Maio de 2013, por sugestão do Banco recorrido, o Exmo. Senhor Administrador da Insolvência procedeu à marcação de venda através de leilão público, fixando-se o valor de licitação em € 149.500,00, entretanto corrigido para €159.296,00, tendo em conta a comissão que a leiloeira cobraria à massa na eventualidade da venda ser bem-sucedida, e o facto da massa já dispor de proposta do credor hipotecário de €149.501,00, apresentada directamente ao administrador de insolvência, sem intervenção da leiloeira.
9. O leilão fez-se a 17.07.2013 sem que tivesse sido obtida qualquer proposta igual ou superior às bases de licitação, seja a inicial, seja a subsequente, pelo que o Administrador de Insolvência, já com propostas do recorrente e do G… em seu poder, naturalmente prescindiu dos serviços da leiloeira.
10. O recorrente apresentara directamente ao Administrador de Insolvência uma proposta de €130.000,00, condicionada à obtenção de financiamento bancário junto do G…, valor que em 15.07.2013 subiu o para €149.550,00, quando confrontado com proposta do G… de €149.501,00 e depois subiria para €152.100,00 quando confrontado com uma proposta de €152.000,00 apresentada por J…, Lda.
11. Atendendo às diligências dilatórias empreendidas antes da data da venda por propostas em carta fechada, aparentemente organizadas pelo aludido L…, pai da mandatária do recorrente nos autos, por forma a perpetuar aquele no gozo do imóvel que inicialmente lhe pertencia e que, ao que tudo indica, continua a usar e fruir através da sociedade insolvente, por ele constituída e inicialmente administrada, o signatário suspeitou que o recorrente e a sociedade J…, Lda. se tivessem mancomunado para, alternando propostas sucessivamente superiores em €100,00 à anterior, evitarem que o Administrador de Insolvência viesse algum dia a adjudicar o imóvel.
12. Suspeita que era agravada por o próprio recorrente ter reconhecido não ter como pagar a sua proposta inicial de €130.000,00, o que se confirma no presente recurso, onde, ao pedir apoio judiciário, reconheceu não ter sequer capacidade para pagar taxa de justiça de €918,00…
13. Assim, como forma de evitar que os autos atolassem numa perpétua sucessão de propostas e contrapropostas e seguindo a lógica consagrada no disposto no actual artigo 820º n.º 2 do CPC, convocou-se os dois interessados para no dia 30.10.2013, no escritório do Administrador da Insolvência, licitarem o imóvel em apreço.
14. O credor hipotecário, ao ser informado da data designada para realização da licitação, decidiu apresentar uma nova proposta, no valor de €243.000,00, significativamente superior à melhor até então obtida, que era de €152.100,00 (apresentada pelo recorrente).
15. Como decorre do auto de licitação então lavrado pelo Administrador de Insolvência e subscrito não só por ele como também pelos mandatários do G… e do recorrente, este não se opôs à participação do G… na diligência, nem ali suscitou qualquer incidente.
16. Ora, como decorre do artigo 164º n.º 3 do CIRE, o Banco recorrido, na qualidade de credor hipotecário, podia até à venda oferecer uma proposta de aquisição do imóvel superior à melhor entretanto obtida.
17. Tendo a proposta sido apresentada em “tempo útil”, uma vez que foi anterior à venda e por “preço superior ao da alienação projectada” e do “valor base fixado”.
18. Não tendo tal proposta sido coberta por qualquer outro interessado, inclusive pelo Recorrente, apesar de ter tido a oportunidade para o fazer, o Administrador da Insolvência considerou a mesma aceite, convidando o Recorrido a proceder ao pagamento à massa insolvente do correspondente a 20% do valor oferecido, o que este já realizou.
19. Nada obsta, portanto, a que se concretize a adjudicação do imóvel ao credor hipotecário cuja proposta excede, substancialmente, as demais formalizadas nos autos, devendo improceder as objecções suscitadas pelo proponente D… na medida em que lhe foi concedida participação no ato de licitação (pelo que podia exercitar a opção de adquirir o imóvel por valor mais elevado) e não lhe é legitimo exigir a desconsideração de proposta mais elevada apenas para tutela de uma sua expectativa na aquisição.
20. Com efeito, o objecto da liquidação num processo de insolvência não é conceder boas oportunidades de compra aos interessados mas sim maximizar o apuro, vendendo pelo preço mais alto que seja possível, de modo a atenuar as perdas patrimoniais incorridas pelos credores.
21. Nem sequer se pode considerar a actuação do Administrador da Insolvência como violadora do disposto nos artigos 161º e 162º do CIRE, porquanto, tais preceitos têm como principal intuito a protecção dos interesses dos credores do insolvente e da própria massa insolvente e não a protecção dos interesses de terceiros, como é o caso do Recorrente e do Sr. L…, pai da mandatária do recorrente.
22. Sem prescindir, sempre se dirá que o prazo para a arguição das nulidades alegadas há muito caducou (artigos 199º n.º 1 e 3 e 202º do CPC).
23. E que as alegações de recurso não são o meio próprio para se arguir nulidades: das nulidades reclama-se, das decisões recorre-se.
24. O tribunal de recurso apenas pode sindicar a decisão recorrida tendo em conta as questões nela decididas ou que ela devia ter decidido – não se destina a apreciar questões novas.
25. Ora, o Recorrente reconhece no seu recurso que esteve a par de todos os actos promovidos pelo Administrador de Insolvência nos autos, tendo nestes intervindo como achou conveniente, pelo que ter-se-á de considerar que, a partir daqueles sucessivos momentos, encontrou-se em condições de conhecer os termos das referidas diligências de venda.
26. Nos termos do disposto no artigo 199º n.º 1 do CPC, as nulidades arguidas deveriam ter sido invocadas pelo Recorrente, no prazo legal de 10 dias, a contar do dia em que, depois de cometidas as supostas nulidades.
27. O recorrente aproveita as alegações para fazer uma súmula, à sua maneira, das várias questões com que ao longo dos últimos 10 meses, tentou entorpecer os autos, sempre sem sucesso e sem que tivesse atempadamente recorrido das decisões que foram negando as suas pretensões.
28. A decisão recorrida incidiu única e exclusivamente sobre a decisão 13.01.2014, que se pronunciou sobre a pretensão formulada pelo recorrente a 31.10.2013 no sentido de se considerar extemporânea a proposta do G… no valor de €243.000,00 e de ser aceite, em vez daquela, a proposta do recorrente no valor de €152.100,00.
29. Aliás, tendo estado presente na diligência de licitação, era então que o recorrente devia ter arguido a pretensa nulidade – art. 199º, nº1, CPC.
30. E quanto aos actos anteriores, as questões suscitadas pelo recorrente estão há muito decididas nos autos por decisões transitadas em julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II.
Devidamente interpretadas e colocadas na correcta sequência lógica, as conclusões das alegações de recurso colocam este Tribunal perante o dever de resolver as seguintes questões:
i) Se no âmbito do CIRE é possível reclamar para o juiz das irregularidades cometidas pelo administrador no decurso das diligências para liquidação dos bens da massa insolvente, designadamente mediante reclamação de um terceiro interessado na aquisição dos bens.
ii) Se o administrador estava impedido de aceitar a proposta de compra do bem pelo credor hipotecário de valor superior ao oferecido pelo recorrente por ter sido apresentada após o último acto de venda a terceiros.
III.
Os factos que relevam para a decisão são os que constam do relatório que antecede e que aqui se dão por reproduzidos.
IV.
A primeira questão que o presente recurso obriga a colocar é a dos poderes do administrador de insolvência no tocante à liquidação dos bens da massa insolvente e do papel do tribunal nessa fase do processo de insolvência.
Afirmam Carvalho Fernandes e João Labareda in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2009, pág. 532, o seguinte:
“2. No âmbito do CPEREF, a liquidação da massa falida constituía uma atribuição do liquidatário judicial, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores (ex vi dos art.os 134.º e 180.º).
Mas a comissão, para além da competência geral de vigilância e controlo da actuação do liquidatário e de colaboração com ele na promoção da liquidação, dispunha ainda de importantes poderes específicos que o condicionavam fortemente e a ela conferiam um decisivo papel em todo o processo.
Naquilo que aqui particularmente interessa, destacam-se a necessidade da concordância prévia da comissão para a prática de certos actos fundamentais da liquidação – nomeadamente a determinação da modalidade de venda e a concretização da alienação por negociação particular mesmo depois de já escolhido esse meio de actuação – e a faculdade de impugnação dos actos do liquidatário, nos termos do art.º 136.º.
Note-se, aliás, que a própria administração da massa falida estava, é certo, confiada ao liquidatário judicial, mas sob a direcção do juiz (art.º 141.º).
Quanto aos credores, o colectivo não estava constituído como órgão institucional do processo e, por isso, não havia lugar a reuniões nem deliberações da assembleia. Mas eles podiam individualmente, tal qual, de resto, sucedia também com o falido, reagir contra as irregularidades da liquidação segundo o que expressamente se reconhecia no art.º 184.º (pronunciámo-nos sobre o alcance do preceito na anotação que lhe fizemos, in Código dos Processos Especiais, 3.ª ed., nota 4, págs. 460 e 461).
3. Com o CIRE, as coisas, no plano geral, alteraram-se profundamente.
Segundo o que expressamente consta do Preâmbulo do diploma que aprovou o Código, e se manifesta depois em diversas soluções por ele acolhidas, houve uma preocupação assumida de «intensificação da desjudicialização do processo», reduzindo a intervenção do juiz ao que, alegadamente, releva estritamente do exercício da função jurisdicional, «permitindo a atribuição da competência para tudo o que com ela não colida aos demais sujeitos processuais» (n.º 10 do Preâmbulo do diploma que aprovou o Código).
Com respeito à administração e liquidação da massa, esta preocupação traduziu-se, por um lado, em retirar ao juiz qualquer poder de decisão ou, sequer, de intervenção a propósito, e, a nível ainda mais significativo, no «desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do juiz tanto as deliberações da comissão de credores [...] comoos actos do administrador da insolvência (sem prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição sem justa causa)» (Preâmbulo, loc. cit.).
Em paralelo, e, decerto, com o objectivo de dinamização e eficiência do processo – instrumentos determinantes da melhor satisfação possível dos interesses dos credores, que constitui a finalidade visada pelo instituto da insolvência –, reforçou-se a competência do administrador, eximindo-o à necessidade permanente de obter a aquiescência de outros órgãos para a concretização dos actos de administração e, sobretudo, de liquidação da massa insolvente, por contrapartida da expressa responsabilização pessoal perante os credores.
Nessa medida, por um lado, a determinação da modalidade da venda ficou-lhe, em exclusivo, confiada – ex vi do art.º 164.°, n.º 1 –, e, por outro, ele não depende, em regra, de ninguém mais para promover a liquidação nas suas diversas manifestações.
Não há, também, por regra, a possibilidade de reagir contra os seus actos, em termos de os poder afectar, diferentemente do que antes sucedia.” [sublinhados nossos].
De acordo com o artigo 134.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), que “ao liquidatário judicial, com a cooperação e fiscalização da comissão de credores, cabe o encargo de preparar o pagamento das dívidas do falido à custa do produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que integram o património dele”. O artigo 136.º acrescentava que “os actos do liquidatário judicial podem ser impugnados pela comissão de credores, ou pelo falido, com base na sua ilegalidade ou na sua inconveniência para os interesses da massa falida, em requerimento fundamentado dirigido ao juiz”.
No tocante em particular à fase da liquidação, o artigo 180.º estabelecia que “a liquidação do activo é efectuada pelo liquidatário judicial, com a cooperação e fiscalização da comissão de credores, constituindo o processado relativo à liquidação um apenso ao processo de falência”. E o artigo 84.º precisava que “contra os actos irregulares praticados no decurso da liquidação podem os credores ou o falido, no prazo de cinco dias após a data em que for junto aos autos o relatório em que os actos se encontrem referidos, apresentar reclamação escrita ao juiz, que decidirá, depois de ouvidos o liquidatário judicial e a comissão de credores, bem como as pessoas directamente interessadas na manutenção do acto, com a produção da prova necessária.”
Anotando este último preceito, afirmavam os autores citados, in Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado, Quid Juris, 1994, pág. 420, que “a expressão «actos irregulares» está aqui usada em sentido genérico, para significar todos os actos que, por qualquer motivo, infringem a lei, independentemente da natureza jurídica do vício de que enfermam. O preceito não tem, todavia, o sentido de se substituir ao regime próprio de arguição dos vícios dos actos, mas o de conferir aos credores e ao falido, em qualquer circunstância, a possibilidade de suscitar, perante o juiz do processo, a irregularidade do acto, seja qual for a natureza dela. Nada impedirá, porém, os credores e o falido de recorrerem aos meios gerais de impugnação dos actos do liquidatário, quando, para cada caso, a lei os confira. Por outras palavras, trata-se aqui de atribuir aos credores e ao falido uma faculdade particular que não exclui nem prejudica, antes amplia, os direitos, que, em geral, lhes possam assistir, de reagir contra os actos do liquidatário.” [sublinhados nossos].
O CIRE não contém norma equivalente a esta, o que, como vimos, resulta de uma opção deliberada do legislador[2],[3] que se insere na intenção de aumentar a desjudicialização do processo e, em simultâneo, reforçar os poderes do administrador e a sua responsabilidade pessoal pelo modo como exerce esses poderes.
No âmbito do processo de insolvência o administrador judicial é a pessoa incumbida da gestão ou liquidação da massa insolvente, sendo competente para a realização de todos os actos que lhe são cometidos pelo respectivo estatuto e pelo CIRE (artigo 2.º da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, que aprovou o Estatuto do Administrador Judicial). Um dos requisitos de acesso ao exercício da actividade é a idoneidade para o seu exercício (artigo 3.º, n.º 1, alínea e) do Estatuto). Quanto aos deveres dos administradores judiciais, o Estatuto estipula que no exercício das suas funções e fora delas, os administradores devem actuar com absoluta independência e isenção, estando-lhes vedada a prática de quaisquer actos que, para seu benefício ou de terceiros, possam pôr em crise a liquidação do insolvente, devendo orientar sempre a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores (artigo 12.º).
No CIRE o administrador da insolvência exerce a sua actividade sob a fiscalização do juiz, que pode, a todo o tempo, exigir-lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um relatório da actividade desenvolvida e do estado da administração e da liquidação (artigo 58.º). No exercício desse poder de fiscalização, o juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substituí-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o devedor e o próprio administrador da insolvência, considere, fundadamente, existir justa causa (artigo 56.º).
Os poderes do administrador são em rigor poderes funcionais, isto é, poderes inerentes ao exercício de uma função quer serve interesses alheios confiados ao administrador e cuja nomeação tem por objectivo a realização desses interesses e não os interesses do próprio administrador, ainda que a sua actividade seja remunerada. Por conseguinte, os deveres a cargo do administrador são autênticos deveres de actuação porquanto constitui obrigação do administrador praticá-los e observar na sua prática um grau de diligência e zelo próprio de um administrador criterioso e ordenado, sob pena de incorrer em responsabilidade pessoal perante os credores.
O administrador responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem, sendo a sua culpa apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado (artigo 59.º, n.º 1). O administrador responde igualmente pelos danos causados aos credores da massa insolvente se esta for insuficiente para satisfazer integralmente os respectivos direitos e estes resultarem de acto do administrador (artigo 59.º, n.º 2).
No que concerne em particular à liquidação, cabe ao administrador da insolvência, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir, promover e realizar a liquidação dos bens que integram a massa insolvente (alínea a) do n.º 1 do artigo 55.º).
Para o efeito, e ao contrário do que sucedia no CPEREF, o administrador dispõe mesmo da faculdade de escolher a modalidade da alienação dos bens que entender ser a mais adequada à maximização do produto da liquidação, que é o objectivo que está adstrito a prosseguir com zelo, podendo optar por qualquer das que são admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente, sem para o efeito depender de qualquer deliberação ou autorização dos credores (artigo 164.º, n.º 1)[4].
Esta faculdade de escolha de modalidades de venda não reguladas no processo executivo tem inerente a possibilidade de o administrador de insolvência escolher formas atípicas de venda e de definir ele mesmo as regras a que a modalidade escolhida deve obedecer, nada obstando a que a modalidade escolhida seja afinal uma mistura de procedimentos próprios das modalidades típicas do processo executivo.
Como é óbvio, nessa escolha e definição o administrador deve optar, necessariamente, por aquelas que de acordo com as circunstâncias concretas que se lhe deparam, se mostrarem mais aptas para optimizar o resultado da liquidação e a satisfação do interesse dos credores, tendo sempre presente o critério de um administrador criterioso e ordenado.
O administrador pode iniciar a venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente logo que a declaração de insolvência tenha transitado em julgado e tenha sido realizada a assembleia de apreciação do relatório e desde que as deliberações tomadas pelos credores na assembleia de apreciação do relatório não se oponham a essa venda (artigo 158.º). Para a prática de alguns actos, pelo seu relevo económico, a lei exige, porém, que o administrador obtenha o consentimento da comissão de credores, ou, não existindo aquela, da assembleia de credores (artigo 161.º). Tratam-se de actos com especial relevo para o processo de insolvência, ou seja, actos que têm especial impacto na massa insolvente ou no conjunto das dívidas da insolvência[5].
Ainda que o administrador actue ao arrepio dessa necessidade de autorização da comissão de credores ou das deliberações dos credores não se segue sem mais que os actos por ele praticados nessas circunstâncias sejam nulos ou anuláveis. O artigo 163.º prescreve, com efeito, que a violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte. Por conseguinte, nessa situação devem distinguir-se os efeitos ao nível interno, isto é, entre o administrador, o insolvente e os credores, em que o administrador, para além de poder ser destituído, é chamado a responder pelas consequência da sua actuação ilícita e terá de indemnizar os danos resultantes para os credores, dos efeitos ao nível externo, isto é, ao nível das relações com terceiros, estranhos ao processo de insolvência, em que se mantém a validade e eficácia do acto praticado.
Feito este percurso pelas normas legais atinentes podemos assim concluir que fora dos casos em que o administrador está condicionado pelas deliberações dos credores e dependente do consentimento destes, onde se não inclui a escolha da modalidade da venda e dos procedimentos a adoptar para a sua concretização, o administrador tem competências próprias para proceder, de acordo com o seu critério, a todos os actos de venda dos bens da massa insolvente, podendo para o efeito, realizá-los conforme bem entender, designadamente no tocante às modalidades e formalidades a adoptar para concretizar a venda.
Nesses actos, o administrador está vinculado a actuar como administrador criterioso e ordenado, sob pena de responder pelos danos que a sua actuação cause aos credores. Contudo, os seus actos não podem ser impugnados perante o juiz, já que perante terceiros, em regra, se mantém válidos e eficazes, sem prejuízo do dever de indemnização que façam recair sobre o administrador. Tanto basta para concluir que o recurso não pode deixar de improceder uma vez que não cabe na competência jurisdicional apreciar a regularidade dos actos praticados pelo administrador que motivaram o recurso.
Mas existe outra razão em virtude da qual o recurso não pode deixar de improceder. Como se observa das conclusões de recurso, o recorrente não pretende propriamente que o tribunal anule ou declare nulos actos praticados pelo administrador no decurso das diligências para venda de um bem, o que deveria desencadear a destruição retroactiva desses actos e implicar a repetição dos mesmos ab initio mas sem os vícios cometidos. O recorrente pretende sim que se decrete judicialmente que as suas propostas apresentadas para compra desse bem foram regularmente aceites e, portanto, que a escritura pública de transmissão do bem deve ser celebrada consigo.
Ora a venda dos bens onerados com garantias a favor de credores – no caso tratava-se de uma hipoteca que onerava o imóvel a favor do credor G… – é precisamente um dos casos especiais em que o administrador tem de ouvir o credor e observar alguns cuidados especiais na venda dos bens.
Assim, nos termos do artigo 164.º, n.º 2, do CIRE, os credores que gozem de garantia real sobre bens a alienar devem ser sempre ouvidos pelo administrador sobre a modalidade da alienação e devem ainda ser informados do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada.
Por outro lado, nos termos do artigo 164.º, n.º 3, do CIRE, esses credores, depois de informados do preço pelo qual está projectado fazer a alienação dos bens onerados, têm ainda a faculdade de propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada, sendo que se o administrador não aceitar a sua proposta fica obrigado a colocá-los na situação em que ficariam se a proposta houvesse sido aceite, respondendo pessoalmente por essa situação.
O que resulta daqui é que o administrador tinha não apenas a faculdade mas inclusivamente a obrigação de ouvir o credor garantido sobre as vicissitudes pelas quais estava a passar a venda do imóvel e relativamente às quais tinham ambos fundadas suspeitas de estarem perante movimentações de terceiros interessados em impedir ou atrasar a venda, sendo por isso perfeitamente justificada a realização das diversas diligências tendentes a testar as boas intenções dos proponentes e aumentar o produto da alienação do bem onerado com a hipoteca.
E resulta outrossim ainda que ainda que a(s) proposta(s) do ora recorrente fosse de facto a melhor e estivesse em condições de ser aceite, sempre restaria ao credor garantido pelo bem a possibilidade de, na semana seguinte ou mesmo depois, desde que antes da celebração da eventual escritura pública com o recorrente, se propor adquirir, por si ou mesmo por terceiro, o bem por preço superior ao da proposta do ora recorrente.
É óbvio que não existe aqui qualquer abuso de direito por parte do credor garantido, pela simples razão de que sendo credor garantido ele gozava, independentemente da insolvência, da faculdade de executar o bem para a satisfação do seu crédito, pelo que a possibilidade de, no âmbito do processo de insolvência, sobrepor um preço superior ao da melhor proposta que tenha sido apresentada não passa apenas de uma última oportunidade para assegurar a execução prática da garantia que beneficiava o seu crédito e diminuir na medida do possível a parte do seu crédito que acaba por não ser satisfeita em virtude da insolvência do devedor.
Esta faculdade não representa mais que um reflexo, na liquidação em processo de insolvência, da posição de vantagem que qualquer credor beneficiado por uma garantia real sobre o bem a vender tem relativamente aos demais credores e a quaisquer terceiros (que não sejam o devedor e o credor) cujo único interesse é o de pagar o menor preço possível pela aquisição dos bens postos à venda, independentemente do seu valor de mercado e dos prejuízos que uma venda nessas condições acarreta para o devedor e para os seus credores.
Essa vantagem justifica-se ainda por não acarretar qualquer prejuízo para o devedor ou para os demais credores, porquanto do exercício da mesma só pode sobrevir um maior produto da liquidação da massa, o que corresponde ao objectivo último do processo de insolvência e da actuação do administrador.
Quanto aos terceiros interessados na aquisição do bem, deve acentuar-se, conforme escreveu nos autos o Sr. Procurador da República na vista de 03.10.2013, que “o objecto da liquidação num processo de insolvência não é conceder boas oportunidades de compra aos interessados mas sim maximizar o apuro, vendendo pelo preço mais alto que seja possível, de modo a atenuar as perdas patrimoniais incorridas pelos credores”.
O mais que o recorrente podia pretender era que se cumprissem as regras, mas entre estas conta-se a regra de caber ao credor com garantia sobre o bem a vender a possibilidade de superar qualquer proposta que tenha sido apresentada e forçar a aquisição, por si ou mesmo por terceiro por si indicado, pelo preço mais elevado que ofereça, não tendo sequer de o fazer no próprio acto em que os terceiros apresentam as suas propostas.
Refira-se, aliás, que o preço pelo qual o credor garantido se propôs adquirir o bem representa em relação ao preço proposto pelo recorrente um acréscimo de praticamente 30%, pelo que de forma alguma se pode considerar que o ocorrido tenha visado o mero objectivo de afastar o proponente, sem qualquer significado económico para a liquidação e para os interesses do devedor e dos credores, que seria a única situação em que se poderia efectivamente questionar se não estaríamos perante um abuso de direito.
Pelo contrário, tratou-se de uma forma de aumentar significativamente o produto da liquidação e também, face ao valor oscilante das propostas de iam sendo apresentadas pelo ora recorrente e por outro putativo interessado que não compareceu sequer ao acto de licitação que permitiria sondar as suas verdadeiras intenções neste processo, de uma forma de ultimar a venda do bem, cumprindo a celeridade que o CIRE pretende que esta fase do processo tenha.
Não se vislumbra, pois, absolutamente nenhum fundamento para recusar ao credor garantido a faculdade que lhe foi reconhecida pelo administrador de suplantar a proposta do ora recorrente e com isso de a afastar. Razão pela qual o recurso não pode deixar de improceder.
V.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
*
Porto, 29 de Maio de 2014.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto145)
José Amaral
Teles de Menezes
_____________
[1] Aquilo que o recorrente intitula como conclusões não são efectivamente conclusões, mas a pura repetição, com outra numeração, das alegações, situação que em bom rigor, deveria conduzir à rejeição imediata do recurso por falta de conclusões em sentido próprio. No entanto, porque ajudam a esclarecer a polémica instalada, reproduzem-se na íntegra as ditas conclusões.
[2] Anota Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, 2013, 5.ª ed., pág. 262, que “Como decorre do ponto 10 do Preâmbulo do CIRE, desapareceu a possibilidade de impugnação junto do juiz dos actos do administrador de insolvência, «sem prejuízo dos poderes de fiscalização e destituição por justa causa».”
[3] O artigo 184.º do CPEREF só consentia, como vimos, que das irregularidades nos actos praticados no decurso da liquidação, reclamassem para o juiz os credores ou o falido. Mesmo essa norma não consentia, portanto, que apresentassem reclamação quaisquer outros interessados nesses actos que não tivessem a qualidade de credores do falido, como aqui sucede com o recorrente que não se apresenta em momento algum como credor dos insolventes.
[4] Ao contrário do que sucedia no CPEREF, onde a escolha da modalidade da venda só podia recair numa das modalidades previstas no Código de Processo Civil (e subsequentemente teria de observar as respectivas regras) e dependia ainda da concordância da comissão de credores (artigo 181.º). O que como anota Maria do Rosário Epifânio, loc. cit., se enquadra “na tendência da desjudicialização do processo de insolvência e no correspectivo reforço dos poderes do administrador da insolvência”.
[5] cf. Paula Costa e Silva, in A Liquidação da Massa Insolvente, Revista Ordem dos Advogados, 2005, Ano 65, Vol. III - Dez. 2005.
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