contrato - promessa de compra e venda

I - As partes celebraram entre si um contrato-promessa de compra e venda que teve como objecto um bem imóvel.

II - Porém, o contrato é originalmente nulo, porque, desde o início, existiu a impossibilidade legal de contratar a transacção do prédio (dada a situação de clandestinidade do bem imóvel prometido vender).

III - Nestas circunstâncias, não ocorre abuso de direito, visto que não existe qualquer actuação da parte susceptível de fazer desencadear tal instituto. A invalidade decorre da inobservância de normas legais de ordem pública, designadamente de ordenamento e estruturação do território nacional, visando a repressão da construção clandestina, sendo alheia a qualquer acção da parte contratante.

IV - Não se poderá considerar a conversão do contrato, de harmonia com o art. 293.º do CC, visto a factualidade a que se referem os recorrentes para defenderem a sua tese, não consta do acervo dos factos provados. Além disso, o tema constitui questão nova a que este tribunal, por isso, não deverá dar resposta.
Decisão Texto Integral:                                         
                                               Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
                       
                       
                       
                        I- Relatório:
                        1-1- AA e mulher, BB instauraram na 1a Vara Mista da Comarca de Loures, contra CC e mulher, DD, a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que se declare a nulidade do contrato-promessa de compra e venda de imóvel, descrito, sob o nº ..., na Conservatória do Registo Predial de Odivelas (freguesia de Famões), celebrado no dia 17 de Setembro de 2009, e que os RR. sejam também condenados na devolução de todas as quantias pagas no âmbito desse contrato e ainda no pagamento da quantia de € 4.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais.
                        Fundamentam este pedido, em síntese, dizendo que celebraram entre si tal contrato-promessa tendo entregue, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 36 000,00, com o remanescente, no valor de € 38 400,00, a ser pago até 15 de Junho de 2011; entretanto, constaram que tinham sido ludibriados, pois o prédio, estando inserido numa área de génese ilegal, era impossível de ser transaccionado, sendo o contrato nulo, o qual, de resto, também não contém a certificação, pelo notário, da existência da licença de utilização; e com esta situação, que lhes frustrou o projecto de vida familiar, que passava pela aquisição de um lar para si e a filha, ficaram profundamente traumatizados, magoados e ofendidos.
                       
                        Os RR., pessoal e regularmente citados, contestaram a acção, alegando, designadamente, que os AA. conheciam a situação do prédio, que foi determinante do preço fixado, não havendo motivo para a declaração de nulidade do contrato, que consubstanciaria uma situação de abuso do direito e concluíram pela sua absolvição do pedido.
                       
                        O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido o despacho saneador, após o que se fixaram os factos assentes e se organizou a base instrutória, se realizou a audiência de discussão e julgamento, se respondeu à base instrutória e se proferiu a sentença.
                        Nesta julgou-se a acção improcedente, absolvendo-se os RR. do pedido.

                        1-2- Inconformados com a sentença, recorreram os AA. de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo-se aí julgado parcialmente procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, declarando-se a nulidade do contrato-promessa com condenação dos RR. a restituírem aos AA. a quantia de € 36.000,00.                 
                        1-3- Irresignados agora com este acórdão, dele recorreram o RR. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.
                       
                        Os recorrentes alegaram, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:
                        1ª- As questões primordiais a decidir serão as de saber se se verificou algum vício na formação da vontade dos AA., ora recorridos, em contratar, designadamente por os RR., aqui recorrentes, não terem actuado com os ditames da boa fé nos preliminares e na conclusão do negócio, e se o contrato celebrado entre AA. e RR. padece de alguma nulidade.
                        2ª- E a existir esse vício, se a sua invocação pelos AA. constituiu abuso de direito.
                        3ª- E, finalmente, saber se o negócio é susceptível de conversão, como defendem os RR.
                        4ª- No caso dos autos, está provado que nem os RR. promitentes vendedores foram enganados, nem os AA. promitentes compradores pretenderam enganar aqueles. Quer o contrato promessa quer os sucessivos aditamentos são bem demonstrativos da boa fé dos ora recorrentes.
                        5ª- O contrato promessa celebrado foi o contrato que as partes conscientemente quiseram celebrar como é reconhecido no acórdão recorrido que se transcreve: "Embora os promitentes-­compradores tivessem consciência da natureza do prédio prometido vender, sem alvará de loteamento e sem licença de utilização ou de construção, face às declarações constantes do contrato-promessa, e, por isso, não podiam ser enganados... "
                        6ª- A invalidade do contrato-promessa, por si só, não é motivo suficiente para concluir que existe obrigação dos ora recorrentes restituírem o que receberam pois,
                        7ª- A nulidade em questão é uma nulidade atípica, visto que não é invocável por terceiros, nem pode ser conhecida oficiosamente pelo Tribunal.
                        8ª- Essa nulidade pode ser arguida pelo promitente comprador, destinatário da norma protectora, embora excepcionalmente, a parte final do nº 3 do art. 410° do Código Civil confira ao promitente vendedor a faculdade de invocar a omissão dessas formalidades, quando a mesma tenha sido causada, culposamente, pela outra parte.
                        9ª- Admitida a nulidade do contrato por falta da certificação da licença de utilização, importa saber se os AA., ora recorridos, podem invocar essa nulidade sem incorrer em abuso de direito, na modalidade de "venire contra factum proprium" .
                        10ª- Nos termos do art. 334º do Código Civil "é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito."
                        11ª- O conceito da boa fé, constante do art. 334º do Código Civil está em conexão com as exigências fundamentais da ética jurídica, "que se exprimem na virtude de manter a palavra e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do círculo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos" como ensina Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações. Portanto, um direito ainda que legítimo, não pode ser exercido de forma arbitrária, mas antes de um modo equilibrado, moderado, lógico e racional.
                        12ª- Os AA, ora recorridos celebraram um contrato promessa relativo ao imóvel dos autos, onde habitavam há alguns anos e sabedores de todas as vicissitudes do mesmo, e tentaram fazer crer aos RR., ora recorrentes, que estavam de boa fé no negócio, pedindo e sendo-lhes concedidas várias prorrogações e aditamentos.
                        13ª- Sabendo de tudo e vindo agora pretender o exercício do direito de invocar a nulidade do contrato, fere de tal modo o sentido ético-jurídico que deve nortear os comportamentos das partes contratantes e, necessariamente, impõem a conclusão de que se verifica um abuso de direito, na modalidade de "venire contra factum proprium".
                        14ª- É, assim inaceitável, à luz dos princípios ético-jurídicos aplicáveis e da tutela da confiança que os AA. venham agora desistir do negócio sem qualquer razão compreensível para tanto, prevalecendo-se de uma invalidade formal, cuja existência durante anos não os impediu de assumir comportamentos que levavam a concluir que não pretendiam prevalecer­-se dessa mesma invalidade.
                        15ª- Há pois que concluir que não se verificou qualquer erro na formação da vontade dos AA. ao contratar, nem os RR. actuaram ao arrepio das boas e leais práticas nos preliminares e na celebração do contrato. Pois estando os AA. na posse de todos os elementos, tendo contratado de livre e espontânea vontade, insistindo nessa expressa vontade nos sucessivos aditamentos, seria de esperar que agissem em conformidade.
                        16ª- Dada a confiança incutida nos RR., jamais estes poderiam pensar que os AA viessem alegar a nulidade do contrato.
                        17ª- Ao fazerem-no neste momento agem com abuso do direito, conforme o tipifica o art. 334º do CC pois excedem manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico desse direito.
                        18ª- O douto acórdão recorrido terá "esquecido" que as partes queriam o negócio exactamente como foi celebrado. E que os AA, aqui recorridos, eram perfeitos conhecedores de toda a situação do imóvel, onde já residiam há alguns anos (facto provado), tanto que fizeram constar do contrato cláusulas que os permitiria assumir a posição de donos do imóvel.
                        19ª- O que resulta dos factos provados é que os AA quiseram o negócio, aceitaram-no nas condições em que o mesmo foi celebrado, reforçaram com os diversos aditamentos essa convicção. Pelo que invocar a invalidade do mesmo, por motivos formais que, repete-se, conheciam e aceitaram, é permitir o uso abusivo do direito pela "ausência de coerência" de toda a sua actuação. O que terá que ser concluído com as legais consequências
                        20ª- O contrato definitivo, previsto no contrato promessa declarado nulo, ou seja, a escritura de compra e venda seria e é possível logo que toda a documentação estiver em ordem, nomeadamente no que concerne à legalização do bairro em que o imóvel está inserido. Sendo o negócio realizável no futuro pode haver conversão do contrato nos termos do art.293º do CC.
                        21ª- O douto acórdão recorrido viola o art. 410° "à contrario", o art. 334º e o art. 293º todos do Código Civil.

                         Não foram apresentadas contra-alegações.                      
                       
                        Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
                       
                        II- Fundamentação:
                        2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas.
                        Nesta conformidade, serão as seguintes as questões a apreciar e decidir:
                        - Se o contrato-promessa celebrado entre AA. e RR. padece de nulidade.
                        - A existir esse vício, se a sua invocação pelos AA. constituiu abuso de direito.
                        - Se o negócio será susceptível de conversão, nos termos do art. 293º do C.Civil.  
                       
                        2-2- Vem fixada das instâncias a seguinte matéria de facto:
                        1- No dia 17 de Setembro de 2009, AA. e RR. subscreveram o escrito particular de fls. 13 a 16, sob a epígrafe "contrato-promessa de compra e venda e recibo de sinal” com o seguinte clausulado:
            “1º- Os primeiros outorgantes (RR.) são donos e legítimos proprietários, do prédio urbano descrito sob o nº ..., do Livro n° … da Conservatória do Registo Predial de Odivelas, lote de terreno para construção, situado em ... (...).
            2°- No referido lote os primeiros outorgantes construíram, na parte que lhes pertence de 82,50 m2, o prédio urbano (...), com a área coberta de 50 m2 e logradouro de 32,50 m2, (...).
            3° Pelo presente contrato os primeiros outorgantes prometem vender e os segundos outorgantes (AA.) prometem comprar, livre de quaisquer ónus ou encargos, com excepção dos arrendamentos existentes e que são do perfeito conhecimento dos segundos outorgantes, o referido prédio ( ... ).
            4° O preço ajustado é de € 74.400,00 (...), os quais serão pagos da seguinte forma: a) € 30.000,00 (...) são pagos neste acto (...) b) € 44.400,00 (...) serão pagos até ao dia 1 de Março de 2010.
            5° Após o pagamento da totalidade do preço os primeiros outorgantes passarão uma procuração irrevogável a favor dos segundos outorgantes para que estes possam praticar todos os actos necessários sobre o referido imóvel, incluindo a venda a eles próprios.
            § único: Fica bem claro para todos os outorgantes que, dado que o ora prometido vender se encontrar inserido num bairro de génese ilegal, não é possível efectuar de imediato a escritura de compra e venda e que a procuração supra referida se destina a permitir aos segundos outorgantes praticar todos os actos necessários sobre o imóvel.
             6° Após o pagamento da totalidade do preço são da responsabilidade dos segundos outorgantes todas as despesas, taxas, impostos, derramas, colmas, pagamentos a comissão de moradores e todas as despesas com escrituras, registos e tudo o necessário e que diga respeito ao supra referido prédio e ao presente contrato.
            7º A partir do pagamento da totalidade do prédio, os segundos outorgantes poderão receber as rendas dos andares arrendados, e que eles são perfeitos conhecedores, e fazer suas as respectivas rendas, pagando os competentes impostos sobre os mesmos.
            § único: Enquanto não for possível fazer a transmissão pública do prédio, os impostos, taxas, coimas ou derramas que vierem em nome dos primeiros outorgantes são da exclusiva responsabilidade dos segundos outorgantes, os quais entregarão aos primeiros outorgantes as quantias necessárias para o pagamento dos mesmos logo que solicitadas.
            8° (...) Este contrato corresponde à real vontade de todos os outorgantes, é aceite por eles livremente em todas as cláusulas, condições e obrigações de que têm inteiro e perfeito conhecimento”.
                        2- No dia 15 de Março de 2010, os AA. e os RR. outorgaram um aditamento ao escrito referido, designadamente, com o seguinte conteúdo:
            “1ª- Os Outorgantes acordam que a cláusula 4ª do contrato promessa celebrado passará a ter a seguinte redacção: «4ª O preço ajustado é de € 74.400,00 (...), os quais serão pagos da seguinte forma: a) € 30.000,00 (...), como sinal, foram pagos neste acto (...). b) € 1.000,00 (...), como reforço do sinal foram pagos em 15 de Março de 2010. c) O restante do preço, ou seja € 43.400,00 (…) será pago até ao dia 30 de Setembro de 2010.»           2ª- Os outorgantes reconhecem e disso estão cientes que, dado que o prédio ora prometido vender se encontra inserido num bairro de génese ilegal, não é possível efectuar de imediato a escritura de compra e venda e que a procuração referida no contrato promessa se destina a permitir aos segundos outorgantes praticar todos os actos necessários sobre o imóvel, desejando os outorgantes, mesmo apesar desse facto e dessa limitação, que o negócio se mantenha e nada mais exigindo uns aos outros seja a que título for.
             § Para que os primeiros outorgantes possam passar a procuração irrevogável, os segundos outorgantes comprometem-se a pagar o (...) IMT antes do dia 30 de Setembro de 2010 e disso fazerem prova perante os primeiros outorgantes.
            3ª ( ... ).
             4ª- Os segundos outorgantes expressamente reconhecem que poderão reforçar o sinal entregue aos primeiros outorgantes se não pagarem a totalidade do preço até ao dia 30 de Setembro de 2010, data limite do contrato (...)".
                        3- No dia 7 de Dezembro de 2010, os AA. e os RR. subscreveram novo aditamento ao contrato-promessa celebrado nos termos seguintes:
            "1ª- Os outorgantes acordam que a cláusula 4ª do contrato promessa celebrado passará a ter a seguinte redacção:
            «4° O preço ajustado é de € 74.400,00 (…), os quais serão pagos da seguinte forma: a) e 30.000,00 (…), como sinal, foram pagos neste acto (…). b) € 1.000,00 (…), como reforço do sinal foram pagos em 15 de Março de 2010. c) € 5000,00 (…) são pagos em 7 de Dezembro de 2010. d) O restante do preço, ou seja € 38.400,00 (…) será pago até ao dia 15 de Junho de 2011»
            2ª- Os outorgantes reconhecem e disso estão cientes que, dado que o prédio ora prometido vender se encontrar inserido num bairro de génese ilegal, não é possível efectuar de imediato a escritura de compra e venda e que o procuração referida no contrato promessa se destina a permitir aos segundos outorgantes praticar todos os actos necessários sobre o imóvel, desejando os outorgantes, mesmo apesar desse facto e dessa limitação, que o negócio se mantenha e nada mais exigindo uns aos outros seja a que título for.
            § Para que os primeiros outorgantes possam passar a procuração irrevogável, os segundos outorgantes comprometem-se a pagar o (…) IMT antes do dia 15 de Junho de 2011 e disso fazerem prova perante os primeiros outorgantes.
            3ª- (…)
            4ª- Os segundos outorgantes expressamente reconhecem que poderão reforçar o sinal entregue aos primeiros outorgantes se não pagarem a totalidade do preço até ao dia 15 de Junho de 2011, data limite do contrato promessa.
            5ª- Fica sem efeito o anterior aditamento de 15 de Março de 2010".
                        4- No dia 4 de Maio de 2011, os RR., por intermédio do seu mandatário, notificaram os AA. para procederem ao pagamento do IMT, comunicando-lhes que deveriam pagar o remanescente do preço até ao dia 15 de Junho de 2011 e dizendo-lhes que tal prazo "é para respeitar" e que não haveria "novos aditamentos nem novos prazos com as legais consequências".
                        5- Os AA. habitam no R/C do prédio dos autos há alguns anos.
                        6- Os AA. são emigrantes paquistaneses. ------------------------

                        2-3- O douto acórdão recorrido sobre a questão essencial em debate (nulidade do contrato) afirmou que o contrato-promessa “omitiu a certificação notarial da existência da licença de utilização ou de construção”, sendo certo que “situando-se o imóvel prometido vender numa área de génese ilegal, obviamente, que o contrato-promessa não podia certificar a existência da licença de utilização ou de construção, situação de que ambos os contraentes estavam cientes”. Acresce que “enquanto não estivesse concluída a reconversão urbanística, nomeadamente nos termos do regime excecional estabelecido na Lei nº 91/95, de 2 de Setembro, com as alterações introduzidas pela Lei nº 165/99, de 14 de Setembro, Lei nº 64/2004, de 23 de Agosto, Lei nº 10/2008, de 20 de Fevereiro, e Lei nº 79/2013, de 26 de Novembro, existia uma impossibilidade legal em celebrar o contrato prometido de compra e venda”. Concluiu afirmando que “tanto uma situação como a outra são geradoras de nulidade do contrato-promessa celebrado, como se reconhece na sentença recorrida”.
                        Entendeu, assim, o aresto recorrido, pelas aludidas razões, padecer o contrato-promessa celebrado de nulidade. Nesta parte confirmou o que sobre o assunto se decidiu na sentença de 1ª instância. Questionou depois se poderiam os promitentes-compradores (os AA.) invocar a nulidade do contrato sem incorrerem em abuso de direito, ao que respondeu afirmativamente, divergindo da posição assumida na decisão recorrida. Neste contexto afirmou expressamente que “o pedido de declaração da nulidade do contrato-promessa, por omissão da formalidade legal prevista no nº 3 do art. 410° do CC, não consubstancia uma situação de abuso do direito”.
                        É sobre aspecto, em especial, que os recorrentes mostram o seu inconformismo, pois defendem que o exercício do direito de invocar a nulidade do contrato por banda dos AA., fere de tal modo o sentido ético-jurídico que deve nortear os comportamentos das partes contratantes, se impõe a conclusão de que se verifica um abuso de direito, na modalidade de "venire contra factum proprium". É inaceitável, à luz dos princípios ético-jurídicos aplicáveis e da tutela da confiança, que os AA. venham agora desistir do negócio sem qualquer razão compreensível para tanto, prevalecendo-se de uma invalidade formal, cuja existência durante anos não os impediu de assumir comportamentos que levavam a concluir que não pretendiam prevalecer­-se dessa mesma invalidade. Estando os AA. na posse de todos os elementos, tendo contratado de livre e espontânea vontade, insistindo nessa expressa vontade nos sucessivos aditamentos, seria de esperar que agissem em conformidade. Dada a confiança incutida nos RR., jamais estes poderiam pensar que os AA viessem alegar a nulidade do contrato. Ao fazerem-no neste momento agem com abuso do direito, conforme o tipifica o art. 334º do C.Civil pois excedem manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico desse direito.
                       
                        Vejamos:
                        Não existe qualquer dúvida que as partes celebraram entre si um contrato-promessa de compra e venda que teve como objecto o imóvel identificado acima. Mediante este contrato os AA. (promitentes-compradores) acordaram com os RR. (promitentes-vendedores) a compra do bem (art. 410º nº 1 do C.Civil, diploma de que serão as disposições a referir sem menção de origem). Perante este contrato, as partes vincularam-se à celebração do contrato prometido, isto é, à celebração do contrato de compra e venda em relação a tal bem.
                        Abstemo-nos de desenvolver o tema, dado que sobre o assunto nenhuma duvida se levanta.
                        As instâncias consideraram que o contrato padecia de nulidade, vício arguido pelos AA., promitentes-compradores. Isto porque “sendo o imóvel prometido vender parte integrante de área urbana de génese ilegal ("prédio clandestino"), naturalmente, que não era possível certificar-se, através de notário, a existência da licença de utilização ou de construção, formalidade legal exigida pelo nº 3 do art. 410° do CC” (in acórdão recorrido).
                        Nos termos do art. 410º nº 3 “no caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, o documento referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas do promitente ou promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção; contudo, o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte”.
                        Quer dizer, perante este dispositivo, o contrato-promessa relativo à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre imóvel a construir ou já construído, deve constar de documento escrito e conter o reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção. Porém, o promitente vendedor não poderá invocar as omissões indicadas no dispositivo a não ser que estas tenham sido culposamente causadas pela outra parte. Existe aqui uma evidente protecção a favor do promitente-adquirente.
                        Aquela exigência de certificação tem claramente como objectivo a rejeição e repressão da construção clandestina, colocando fora do mundo jurídico as transacções sobre edificações ilegais.
                         Os AA., promitentes-compradores, invocaram a nulidade do contrato decorrente da omissão da especificada formalidade legal (ausência de certificação da existência da licença de utilização ou de construção), sendo que como reconheceram as instâncias, tal omissão tem, como consequência, a invalidade do negócio. Esta invalidade foi invocada pelos promitentes-compradores (beneficiários da promessa de transmissão ou constituição do direito real), pessoas que a poderiam invocar sem qualquer entrave, como resulta da última parte da disposição em evidência[1].
                        Por isso, as instâncias declararam a nulidade do negócio (nulidade atípica[2] – arts. 285º, 410º nº 3 -).
                       
                        Somos em crer que a nulidade do acto se verifica, se bem que por outras razões.
                        Nos termos do art. 280º nº 1 “é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável”. Por sua vez estabelece o art. 401º nº 1 que “a impossibilidade originária da prestação produz a nulidade do negócio jurídico”.
                        Nesta conformidade e porque desde o início do negócio existia a impossibilidade legal de contratar a transacção do bem (dada a situação de clandestinidade do bem imóvel prometido vender[3]), gerou-se (desde logo) a nulidade do contrato (nulidade originária). Por outras palavras, a génese ilegal do imóvel objecto do negócio, acarreta a impossibilidade objectiva da prestação mediata, isto é, a realização do contrato de compra e venda. Assim, nunca o negócio prometido se poderia legalmente realizar.                      
                        Por conseguinte, estabelecendo o objecto material do contrato uma prestação ilegal, a correspondente obrigação não se constituiu validamente. Daí que a respectiva invalidade se verifique desde o início.
                         A prestação debitória tem que ser possível e legal[4]. “Exige-se que a prestação seja realizável, pois ninguém pode considerar-se obrigado ao que não é susceptível de cumprimento …Ainda sob outra perspectiva a impossibilidade diz-se física ou legal, conforme resulta da própria natureza das coisas ou decorre da lei. A prestação é fisicamente impossível se consiste em acto materialmente irrealizável …; legalmente impossível se consiste em acto jurídico que a lei fere de invalidade” (in Direito das Obrigações, Galvão Telles, 7ª edição, pág. 46).
                        No mesmo sentido refere Almeida Costa (in Noções de Direito Civil, 2ª edição, pág. 142) que “aparece-nos como primeiro requisito da prestação debitória o de que esta seja física e legalmente possível (art. 280º nº 1). Mas a impossibilidade da prestação pode ser originária ou superveniente, conforme exista na altura da constituição do vínculo obrigacional ou sobrevenha depois. A primeira impede que a a obrigação nasça, ao passo que a segunda apenas obsta ao cumprimento (art. 790º e segs.)”.
                        A impossibilidade originária impede, como já se disse, que a obrigação se constitua, como claramente decorre do referido art. 401º nº 1. Para o efeito deve atender-se à data em que a obrigação se constitui “sendo indiferente que se trate de uma impossibilidade de desaparecer mais tarde” (Almeida Costa, mesma obra e página).
                        Portanto, repete-se, dada a ilegalidade da prestação a que se vincularam os promitentes vendedores e compradores, as obrigações correspondentes não se chegaram a constituir ou, por outras palavras, as correspondentes declarações são desde logo inválidas, não produzindo qualquer efeito.
                        Como se refere no acórdão deste S.T.J. de 3-11-2009 (www.dgsi.pt/jstj) em caso com semelhança com o dos autos[5]no caso concreto, a fracção prometida vender não podia ser destinada à actividade de restauração, ab initio, porquanto a finalidade licenciada pela Câmara Municipal a tal impedia. Estamos portanto, perante uma impossibilidade legal, resultante das regras que disciplinam imperativamente o regime jurídico de urbanização e edificação. Consequentemente, a prestação a que a Ré se obrigara e a única que interessava ao credor. Não se constituiu validamente. Não ocorre, assim, a extinção de uma obrigação validamente constituída em consequência de uma impossibilidade superveniente (795 nº1 do C.C), mas a nulidade decorrente de uma impossibilidade objectiva e originária da prestação (art. 401 nº1 do C.C.)”.
                        O douto acórdão recorrido, apesar de não ter equacionado nestes termos a questão, acabou por afirmar que “neste contexto, é manifesto que os promitentes-vendedores, não possuindo licença de utilização ou de construção (nem sequer havia alvará de loteamento), não podiam ignorar que o contrato-promessa celebrado pudesse ser declarado nulo, quer por omissão da formalidade prevista no nº 3 do art. 410° do CC, quer ainda pela impossibilidade legal de celebrar o contrato definitivo, nos termos do nº 1 do art. 280° do CC.”. Ou seja, também considerou o contrato nulo por o objecto ser legalmente impossível (art. 280º nº 1).
                       
                        A presente nulidade originária é do conhecimento oficioso, como decorre do disposto dos arts. 280º nº 1 e 286º.
                        As consequências da verificação deste vício, traduzem-se na restituição de tudo o que tiver sido prestado, ou se a restituição não poder ser feita em espécie, do valor correspondente, nos termos do art. 289º nº 1. Assim os promitentes-vendedores (os RR.) têm que restituir tudo o que receberam por efeito da celebração do contrato-promessa, isto é, têm que devolver as quantias recebidas por motivo do negócio celebrado. A obrigação de restituição rege-se pelo disposto no indicado art. 289º nº 1 que estabelece que “tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”. Ou seja, considerando a lei que a nulidade do negócio tem efeito retroactivo, a produção dos seus efeitos têm como excluídos ab initio ou, como se refere no Acórdão deste S.T.J. de 15-10-98 (Col. Jur. III, 63), visa-se com a declaração de nulidade “a mera reposição do statu quo ante”. A obrigação não foi validamente constituída. Assim todas as quantias entregues aos promitentes-compradores por efeito do contrato serão consideradas como quantias a restituir.
                        Nesta parte foi, por conseguinte, correcta a posição assumida pelo douto acórdão recorrido.
                       
                        Evidentemente que olhada a nulidade sob este ponto de vista (nulidade originária e de conhecimento oficioso), o invocado abuso de direito deixou de fazer sentido. Nos casos de nulidade decorrente de a prestação debitória ser (desde logo) ilegal, não existe qualquer actuação da parte susceptível de fazer desencadear o instituto do abuso de direito[6]. A invalidade decorre da inobservância de normas legais de ordem pública, designadamente de ordenamento e estruturação do território nacional, visando a repressão da construção clandestina, sendo alheia a qualquer acção por banda da parte contratante.
                       
                        Defendem ainda os recorrentes que o contrato definitivo, previsto no contrato promessa declarado nulo seria e é possível logo que toda a documentação esteja em ordem, nomeadamente no que concerne à legalização do bairro em que o imóvel está inserido. Sendo o negócio realizável no futuro pode haver conversão do contrato nos termos do art. 293º.
                        Desde logo deve dizer-se que esta objecção parte de pressuposto que não se pode ter como provado, já que o alegado não consta do acervo dos factos provados. Concretamente, não está provado que a documentação do prédio possa vir «a estar em ordem», quando se proceder à «legalização» do bairro em que o imóvel está inserido, nem sequer que esta «legalização» venha a ter lugar.                                
                        Além disso, a questão não foi suscitada anteriormente e não é um tema de conhecimento oficioso, pelo que não poderá ser apreciada. É que, como se sabe, os recursos visam a reapreciação de questões já submetidas a apreciação no tribunal recorrido e não criar decisões sobre matéria nova (neste sentido vai a jurisprudência unânime deste Supremo Tribunal – entre outros, Ac. do S.T.J. de 3-2-2004 in www.djsi.pt/jstj.nsf). Nesta conformidade não é lícito, no âmbito do recurso, invocar questões que não tenham sido suscitadas no tribunal a quo e que, por isso, não tenham sido objecto da decisão recorrida. Ao tribunal de recurso, só cabe, pois, apreciar as questões decididas pelo tribunal hierarquicamente inferior. Só assim não será relativamente às questões de conhecimento oficioso, para o conhecimento das quais, o tribunal de recurso tem competência.

                        Em síntese:
                        As partes celebraram entre si um contrato-promessa de compra e venda que teve como objecto o imóvel identificado acima.
                        Porém, o contrato é originalmente nulo porque desde o início existiu a impossibilidade legal de contratar a transacção do prédio (dada a situação de clandestinidade do bem imóvel prometido vender).
                        Nestas circunstâncias não ocorre abuso de direito, visto que não existe qualquer actuação da parte susceptível de fazer desencadear tal instituto. A invalidade decorre da inobservância de normas legais de ordem pública, designadamente de ordenamento e estruturação do território nacional, visando a repressão da construção clandestina, sendo alheia a qualquer acção da parte contratante.
                        Não se poderá considerar a conversão do contrato, de harmonia com o art. 293º, visto a factualidade a que se referem os recorrentes para defenderem a sua tese, não consta do acervo dos factos provados. Além disso, o tema constitui questão nova a que este tribunal, por isso, não deverá dar resposta.
                                               
                        III- Decisão:
                        Por tudo o exposto, se bem que pelos fundamentos aduzidos, nega-se a revista.
                        Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 13 de Maio de 2014
Garcia Calejo (Relator)
Helder Roque
Gregório Silva Jesus

_______________
[1] A parte contrária, os promitentes-vendedores, é que só poderiam invocar a invalidade se a omissão se devesse a actuação culposa (dolo ou negligência) da outra parte.
Esta invalidade não poderá ser conhecida oficiosamente pelo tribunal e não poderá ser invocada por terceiros (Assentos 3/95 do STJ de 1-2-1995 DR IA de 22-4-1995 e de 15/94 do STJ de 28-6-1994 DR IA de 12-10-1994, hoje com valor de acórdãos uniformizadores de jurisprudência.
[2] Já que não pode ser invocada por terceiros nem pode ser conhecida oficiosamente pelo tribunal.
[3] A situação de clandestinidade do prédio, significa, como é notório, que não foram respeitadas as regras que disciplinam imperativamente o regime jurídico de urbanização e edificação e imóveis.
[4] E também lícita, sendo que esta ocorrerá quando “a prestação se traduza numa conduta que a lei proíba por ofensiva de um dever, como furtar ou difamar” (in Direito das Obrigações, Galvão Telles, 7ª edição, pág. 46).
[5] No caso estava em causa um licenciamento camarário para o espaço que não permitia a actividade para aí pretendida.
[6] Estabelece a este propósito o art. 334º que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

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