O processo de revitalização obsta à resolução do contrato de locação financeira

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1258/13.0TJLSB.L1-2
Relator:JORGE LEAL
Descritores:PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
INSOLVÊNCIA
CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
PROCEDIMENTO CAUTELAR DE ENTREGA JUDICIAL
Nº do Documento:RL
Data do Acordão:20-02-2014
Votação:UNANIMIDADE
Texto Parcial:S
Meio Processual:APELAÇÃO
Decisão:IMPROCEDENTE
Sumário:Improcede providência cautelar de entrega judicial assente em resolução de contrato de locação financeira operada na pendência de processo de revitalização da locatária, quando tal resolução é contrária ao princípio da boa fé a que o devedor e os credores estão sujeitos no decurso do processo de revitalização.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 24.6.2013 “A” - SUCURSAL EM PORTUGAL, instaurou nos Juízos Cíveis de Lisboa procedimento cautelar de entrega judicial, nos termos do Dec.-Lei n.º 149/95, de 24.6, na redação dada pelo Dec.-Lei n.º 30/2008, de 25.02, contra “B” – FABRICAÇÃO ..., LDA..
A requerente alegou que no exercício da sua atividade em 12.10.2009 celebrara com a requerida um contrato de locação financeira de um veículo automóvel, que para o efeito a requerente comprara e entregara à requerida mediante o pagamento de 61 rendas mensais, vencendo-se a primeira em 28.10.2009 e a última em 28.11.2014. Sucede que a requerida não pagou as rendas vencidas em 28.12.2012 e 28.01.2013, nem mesmo após a requerente ter interpelado a requerida para o pagamento do devido, pelo que em 15.02.2013, nos termos do clausulado no contrato, a requerente resolveu o contrato, por carta registada com aviso de receção e cancelou o registo de locação financeira averbado em nome da requerida no registo automóvel. Até ao momento a requerida tem recusado devolver o veículo à requerente, pelo que a requerente terá de intentar a competente ação de condenação para restituição do bem locado, sendo certo que entretanto o veículo desvaloriza-se continuamente e a requerente está impossibilitada de o utilizar.
A requerente terminou pedindo que fosse ordenada a apreensão do veículo e respetivos documentos e bem assim o mesmo lhe fosse entregue, e ainda que o tribunal antecipasse o juízo sobre a causa principal.
A requerida deduziu oposição, alegando, em síntese, que em 27.7.2012 requerera se desse início a processo especial de revitalização, tendo sido nomeado administrador judicial provisório e tendo aí a ora requerente reclamado a totalidade do seu crédito emergente do contrato. Concluídas as negociações, a requerida apresentou plano de recuperação em 17.01.2013, o qual foi aprovado com 98,45% dos votos dos credores (com o voto contra da requerente) e foi homologado por despacho proferido em 20.3.2013. A requerente está vinculada ao plano, pelo que não pode intentar a presente providência cautelar.
A requerida concluiu pela rejeição da providência.
Em 14.10.2013 foi, com dispensa de produção de prova testemunhal, proferida sentença que julgou a providência improcedente.
requerente apelou da dita sentença, tendo apresentado motivação em que formulou as seguintes conclusões:
(…)
apelada contra-alegou, tendo rematado com as seguintes conclusões:
(…)
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
A questão objeto destes autos é se o processo de revitalização instaurado pela ora requerida obstava à resolução do contrato de locação financeira operada pela ora requerente e, consequentemente, ao decretamento da providência sub judice.
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de facto
Do Requerimento Inicial
1. Por operação de fusão transfronteiriça por incorporação o “A” PORTUGAL, S.A. foi incorporado no “A” EUROPE GMBH, passando a operar em Portugal sob a firma “A” EUROPE GMBH – SUCURSAL EM PORTUGAL
2. Por sua vez, o “A” EUROPE GMBH por meio de contrato de cisão e transferência cedeu ao “A” a totalidade dos seus activos e passivos, desenvolvendo a sua actividade em Portugal pela sucursal “A” – SUCURSAL EM PORTUGAL.
3.A Requerente, no exercício da sua actividade, celebrou com a Requerida um Contrato de Locação Financeira Mobiliária n.º ... (ex ...), composto de “Condições Gerais” e de “Condições Particulares”, conforme doc. de fls. 13 a 18 que se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
4.O referido contrato foi celebrado em 12/10/2009.
5. Nos termos do referido contrato (Cláusula 1.ª das “Condições Gerais” e Cláusula 1.ª das ”Condições Particulares”) a Requerente veio a adquirir um veículo automóvel de marca JAGUAR, modelo X-TYPE 2.2 D EXECUTIVE, com matrícula ....
6. A Requerente facultou a utilização de tal bem à Requerida como consta do “Auto de Recepção de Equipamento”, que a mesma assinou.
7. Nos termos do contrato referido, a Requerida estava obrigada ao pagamento de 61 rendas mensais, a primeira no valor de €3.250,00 (três mil duzentos e cinquenta euros) e as restantes no valor de €535,67 (quinhentos e trinta e cinco euros e sessenta e sete cêntimos) cada uma, vencendo-se a primeira em 28/10/2009 e a última em 28/11/2014, a que acresceria I.V.A. em vigor à data do pagamento de cada uma das rendas acordadas, conforme cláusula 7ª e 9ª das “condições particulares” do contrato.
8. O Requerido não pagou 2 rendas, vencidas em 28/12/2012 e 28/01/2013.
9. Em consequência do não pagamento atempado das rendas, a Requerente enviou à Requerida uma carta de interpelação, para que procedesse ao pagamento das quantias em mora, no prazo de 10 dias úteis, desde a data da recepção, nos termos previstos na Cláusula 17.ª das “Condições Gerais”.
10. Posteriormente, e em consequência da continuada falta de pagamento das rendas acordadas a Requerente resolveu o contrato, por carta registada com aviso de recepção, datada de 15/02/2013.
11. A carta foi enviada para a morada constante do contrato, conforme aviso de recepção, tendo a mesma sido recepcionada.
12. A Requerente procedeu ao cancelamento do registo de locação financeira, averbado em nome da Requerida.
13. A propriedade do veículo automóvel está registada em nome da Requerente.
14. A Requerida não devolveu o veículo à Requerente e continua a utilizar diariamente o veículo automóvel locado.
15. O valor comercial do bem que se pretende apreender é, à data de hoje, de €18.850,00.
Da Oposição
16. Em 27/07/2012, a aqui Requerida, ao abrigo do disposto no artigo 17º-A do CIRE, requereu que se desse início ao seu PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO, que corre termos pelo 1º Juízo do Tribunal do Comércio de ..., sob o n.º .../12.4TYVNG.
17. Para instruir o respectivo Requerimento, a Requerida juntou, entre outros documentos, a Relação de Credores, onde fez constar um crédito da Requerente no valor de 17.335,49 €, referente a um contrato de “Leasing Auto”.
18. Proferido despacho de nomeação de Administrador Judicial Provisório, em conformidade com o estipulado no n.º 1 do artigo 17º-D do CIRE, a Requerida enviou cartas registadas a todos os seus credores, inclusive à Requerente, comunicando que tinha dado início a negociações com vista à sua revitalização, convidando-os a participar nas negociações em curso.
19. Em 20/08/2012 a Requerente reclamou os seus créditos, no valor de 18.633,98€, referentes a contrato de locação financeira mobiliária n.º ....
20. O crédito por si reclamado foi reconhecido, constando da lista provisória de créditos apresentada em Setembro de 2012, que, por não ter sofrido impugnações, se transformou em definitiva, em 14/11/2013.
21. A Requerida apresentou, em 17/01/2013, Plano de Recuperação, alterado em 25 de Janeiro de 2013 (cfr. documento de fls. 49 a 51).
22. Tal Plano foi aprovado com 98,45% dos votos dos credores e, consequentemente, homologado, por despacho proferido em 20/03/2013 e transitado em julgado.
23. A Requerente votou contra a aprovação do Plano.
O Direito
Em 29.9.2011 o Conselho de Ministros aprovou uma Resolução (Resolução n.º 43/2011) em que, visando dar cumprimento ao memorando de entendimento celebrado entre a República Portuguesa e o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional no quadro do programa de auxílio financeiro a Portugal, “no qual se prevê um conjunto de medidas que têm como objectivo a promoção dos mecanismos de reestruturação extrajudicial de devedores, ou seja, de procedimentos que permitem que, antes de recorrerem ao processo judicial de insolvência, a empresa que se encontra numa situação financeira difícil e os respectivos credores possam optar por um acordo extrajudicial que visa a recuperação do devedor e que permita a este continuar a sua actividade económica”, no pressuposto de que esses mecanismos, em comparação com o processo judicial de insolvência, terão, como vantagens, a empresa manter-se sempre em actividade, os credores terem uma taxa de recuperação de crédito mais elevada e a empresa manter as suas relações jurídicas e económicas com trabalhadores, clientes e fornecedores, além de se libertar os tribunais para outros processos, enunciou os “Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores” e, bem assim, onze Princípios Orientadores da conduta do devedor e dos credores durante o procedimento extrajudicial de recuperação de devedores.
Seguindo a mesma linha político-legislativa, em 30.12.2011 o Governo apresentou na Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 39/XII, a qual visava proceder à sexta alteração ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, alterado pelos Decretos-Lei n.ºs 200/2004, de 18 de Agosto, 76-A/2006, de 29 de Março, 282/2007, de 7 de Agosto, 116/2008, de 4 de Julho, e 185/2009, de 12 de Agosto, “simplificando formalidades e procedimentos e instituindo o processo especial de revitalização.”
Aí se anunciava que “o principal objectivo prosseguido por esta revisão passa por reorientar o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação.” Assim, desde logo se justificava o proposto retoque na redação do art.º 1.º do CIRE, como visando, “por um lado, sublinhar que a recuperação dos devedores é, sempre que possível, primacial face à sua liquidação, desde que, obviamente, tal não prejudique a satisfação tão completa quanto possível dos credores do devedor insolvente, designadamente a administração fiscal e a segurança social”. E acrescentava-se que, “na mesma linha, é criado o processo especial de revitalização (artigos 17.º-A a 17.º-I), lançando-se a primeira pedra deste processo logo no n.º 2 do artigo 1.º, explicitando-se, em traços muito largos, quais os devedores que ao mesmo podem recorrer. O processo visa propiciar a revitalização do devedor em dificuldade, naturalmente que sem pôr em causa os respectivas obrigações legais, designadamente para regularização de dívidas no âmbito das relações com a administração fiscal e a segurança social.”
Desenvolvendo os traços característicos do processo de revitalização, dizia-se, na Exposição de Motivos, que “o processo especial de revitalização pretende assumir-se como um mecanismo célere e eficaz que possibilite a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência actual. A presente situação económica obriga, com efeito, a gizar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao “desaparecimento” de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas. Este processo especial permite ainda a rápida homologação de acordos conducentes à recuperação de devedores em situação económica difícil celebrados extrajudicialmente, num momento de pré-insolvência, de tal modo que os referidos acordos passem a vincular também os credores que aos mesmos não se vincularam, desde que respeitada a legislação aplicável à regularização de dívidas à administração fiscal e à segurança social e observadas determinadas condições que asseguram a salvaguarda dos interesses dos credores minoritários.” (sublinhado nosso). Mais se dizia, na Exposição de Motivos, que “o processo terá o seu início com a manifestação de vontade do devedor e de, pelo menos, um dos seus credores, no sentido de se encetarem negociações, que não poderão exceder os três meses. Durante este período, suspendem-se as acções que contra si sejam intentadas com a finalidade de lhe serem cobradas dívidas, assegurando-se, assim, a existência da necessária calma para reflexão e para criação de um plano de viabilidade para o devedor que se encontre em negociações” (sublinhado nosso).
A Proposta de Lei n.º 39/XII deu origem à Lei n.º 16/2012, de 20.4, que alterou o CIRE, nomeadamente através do aditamento dos artigos 17.º-A a 17.º-I, referentes ao processo de revitalização. Esses artigos formalizam as normas anunciadas na Exposição de Motivos, realçando-se, aqui, o disposto no n.º 1 do art.º 17.º-A (“o processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização”), no art.º 17.º-B (“Noção de situação económica difícil - Para efeitos do presente Código, encontra-se em situação económica difícil o devedor que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente, por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito”), n.º 1 do art.º 17.º-E (“A decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C [nomeação, pelo juiz, de administrador provisório] obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidadeextinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”), n.º 2 do art.º 17.º-E (“caso o juiz nomeie administrador judicial provisório nos termos da alínea a) do nº 3 do artigo 17.º-C, o devedor fica impedido de praticar atos de especial relevo, tal como definidos no artigo 161.º, sem que previamente obtenha autorização para a realização da operação pretendida por parte do administrador judicial provisório”), n.º 10 do art.º 17.º-D (“durante as negociações os intervenientes devem actuar de acordo com os princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de Outubro.”) e n.º 6 do art.º 17.º-F (“A decisão do juiz [decisão de homologação ou não homologação do plano de recuperação] vincula os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações, e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal, nos termos dos artigos 37.º e 38.º, que emite nota com as custas do processo de homologação.”
De entre os princípios de atuação que devem pautar as negociações entre o devedor e os credores no decurso do processo de revitalização e que estão enunciados na citada Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, realçam-se os seguintes:
Segundo princípio. — Durante todo o procedimento, as partes devem actuar de boa-fé, na busca de uma solução construtiva que satisfaça todos os envolvidos.
Quarto princípio. — Os credores envolvidos devem cooperar entre si e com o devedor de modo a concederem a este um período de tempo suficiente (mas limitado) para obter e partilhar toda a informação relevante e para elaborar e apresentar propostas para resolver os seus problemas financeiros. Este período de tempo, designado por período de suspensão, é uma concessão dos credores envolvidos, e não um direito do devedor.
Quinto princípio. — Durante o período de suspensão, os credores envolvidos não devem agir contra o devedor, comprometendo-se a abster-se de intentar novas acções judiciais e a suspender as que se encontrem pendentes.
Sexto princípio. — Durante o período de suspensão, o devedor compromete-se a não praticar qualquer acto que prejudique os direitos e as garantias dos credores (conjuntamente ou a título individual), ou que, de algum modo, afecte negativamente as perspectivas dos credores de verem pagos os seus créditos, em comparação com a sua situação no início do período de suspensão.
Sétimo princípio. — O devedor deve adoptar uma postura de absoluta transparência durante o período de suspensão, partilhando toda a informação relevante sobre a sua situação, nomeadamente a respeitante aos seus activos, passivos, transacções comerciais e previsões da evolução do negócio.
Nono princípio. — As propostas apresentadas e os acordos realizados durante o procedimento, incluindo aqueles que apenas envolvam os credores, devem reflectir a lei vigente e a posição relativa de cada credor.
Décimo princípio. — As propostas de recuperação do devedor devem basear -se num plano de negócios viável e credível, que evidencie a capacidade do devedor de gerar fluxos de caixa necessários ao plano de reestruturação, que demonstre que o mesmo não é apenas um expediente para atrasar o processo judicial de insolvência, e que contenha informação respeitante aos passos a percorrer pelo devedor de modo a ultrapassar os seus problemas financeiros.
Resulta da matéria de facto provada que em 12.10.2009 a requerente e a requerida celebraram um contrato de locação financeira mobiliária, tendo por objeto um veículo automóvel. A requerida foi cumprindo as suas obrigações, pagando as rendas devidas pela utilização do veículo. Porém, em 27.7.2012 a requerida deu início a um processo de revitalização de si própria, o que pressupunha que se encontrava numa situação económica difícil (ou seja, enfrentava dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito – art.º 17.º-B do CIRE) ou mesmo numa situação de insolvência iminente (art.º 17.º-A n.º 1 do CIRE). Foi nomeado administrador provisório e, aprovada a lista dos credores, da qual fazia parte a ora requerente, que reclamara o seu crédito, iniciaram-se as negociações entre a devedora e os credores. É certo que a requerida, ainda antes da apresentação do Plano de Recuperação, que ocorreu, na sua primeira versão, em 17.01.2013, não pagou a renda do contrato de locação mobiliária sub judice referente ao mês de dezembro de 2012, e também não pagou a renda referente ao mês de janeiro de 2013. Mas a instauração do processo pressupunha exatamente que a devedora se encontrava em dificuldades sérias para cumprir pontualmente as suas obrigações, sendo certo que a entrada em mora relativamente a alguma ou a algumas delas não se enquadra no conceito de ato de especial relevo previsto no art.º 161.º do CIRE, para que o n.º 2 do art.º 17.º-E remete e que é mencionado no supra referido “sexto princípio” de conduta a que o devedor está obrigado durante as negociações. Daí que tal entrada em mora não implicaria, como não implicou, a ruptura das negociações e o fim do processo de revitalização, continuando, assim, a credora impedida de instaurar ação judicial contra a devedora para obter o pagamento do seu crédito, nos termos do art.º 17.º-C, n.º 3 alínea a) do CIRE, ónus esse que abarcaria a instauração da providência cautelar de entrega judicial de bem financeiramente locado, com antecipação do juízo sobre a causa principal, prevista no art.º 21.º do Dec.-Lei n.º 149/95, de 24.6, com a redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 30/2008, de 25.02 (neste sentido, cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de 31.10.2013, processo n.º 761/13.7TVLSB.L1-2 e acórdão da Relação de Lisboa, de 21.11.2013, processo n.º 1290/13.4TBCLD.L1-2).
Como é evidente o plano de recuperação não vai deixar “tudo na mesma”, sob pena de ser inútil. Implicará alterações no que respeita aos prazos de cumprimento das obrigações a que o devedor inicialmente estava vinculado e, porventura, nos montantes pecuniários devidos, seja na sua globalidade, seja quanto ao valor e ao número de prestações parcelares. Assim, e sendo certo que o crédito da locadora financeira foi abrangido pelo plano de recuperação apresentado, as obrigações contratualmente assumidas pela locatária sofreram modificações, conforme de resto resulta do n.º 2 do aditamento ao plano, datado de 25.01.2013, documentado a fls 51 dos autos, em que se prevê a prorrogação do termo do contrato por 4 anos, “sendo que no primeiro ano de vigência desta prorrogação vigorará o pagamento mensal de juros acrescido de um pagamento de capital de € 100; nos anos subsequentes o capital será pago na totalidade da prestação mensal; e um valor residual não inferior a 10% do valor inicialmente contratado” (sic). E, quanto às rendas vencidas, aí se consignou a sua “integração (…) apenas da componente capital, com juros vencidos a serem pagos em 6 prestações consecutivas consequentes à data de homologação do Plano”.
Embora a locadora ora requerente tenha votado contra a aprovação do plano, este foi homologado por decisão judicial (em 20.3.2013) e por isso vincula-a (n.º 6 do art.º 17.º-F do CIRE).
É certo que a ora requerente interpelou a ora requerida para pagar as duas rendas em atraso, e subsequentemente procedeu à resolução do contrato, antes da decisão de homologação do plano de recuperação. Mas na altura da interpelação já decorriam as negociações para aprovação do plano e aquando da declaração de resolução do contrato já havia sido apresentado o próprio plano de recuperação. Assim, a requerente não podia ignorar as negociações e o plano e reclamar o pagamento das rendas e impor a resolução do contrato, por tal contrariar, desde logo, o princípio da boa fé vertido na Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, para que remete o n.º 10 do art.º 17.º-D do CIRE.
A providência sub judice visa acautelar os interesses dos locadores financeiros, pressupondo que estes estão legitimados, face ao Direito, para exigir do locatário a restituição da coisa locada, seja porque o contrato foi validamente resolvido, seja porque, findo o prazo do contrato, o locatário não exerceu o direito de compra (n.º 1 do art.º 21.º do Dec.-Lei n.º 149/95, de 24.6). Ora, como se viu supra, a resolução do contrato ocorreu em termos que atentam contra o princípio da boa fé, pelo que não pode operar enquanto pressuposto da pretendida apreensão e restituição do bem locado, posto que a requerente nem sequer alegou qualquer incumprimento, por parte da requerida, das obrigações a que se vinculou, perante a credora, no âmbito do plano de recuperação (plano cuja existência, aliás, a requerente omitiu no requerimento da providência).
Isto exposto, conclui-se que a apelação não merece acolhimento, devendo manter-se a decisão recorrida.

DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo da apelante.

Lisboa, 20.02.2014

Jorge Manuel Leitão Leal
Ondina Carmo Alves
Eduardo José Oliveira Azevedo
Decisão Texto Integral:

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