A exoneração do passivo restante

O Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas ( C.I.R.E., a que pertencem as disposições que hão-de citar-se sem menção de origem) abriu a porta da insolvência ao cidadão comum (na pele de pessoa singular – nomen juris -, do consumidor ao comerciante ou ao trabalhador independente) permitindo-lhe tal como às pessoas colectivas, a liquidação total de seu património a favor dos respectivos credores.
Porém, e ao invés destas que se dissolvem ou extinguem, por regra, com o registo do encerramento do processo, às pessoas singulares reconhece-se-lhe a possibilidade de sua reabilitação económica, beneficiando de uma segunda oportunidade (fresh start), de começar de novo a sua actividade económica, sem o ferrete da insolvência e o peso das obrigações de que se liberaram (artº235º).
O instrumento que a lei, nesse sentido, põe ao dispor do devedor é a exoneração do passivo restante, mecanismo cujo objectivo final é a extinção das dívidas e a libertação do devedor de parte de seu passivo, de forma mais breve e leve que a da prescrição tradicional (artº309º do CC). Como se escreve no preâmbulo do C.I.R.E., o princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedido ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos… que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento.
Se bem que, pelo que já se adiantou, seja evidente a protecção do devedor, não se pense, porém que estejamos perante qualquer delírio proteccionista que desampare os direitos dos credores já que estes, não só concorrem à liquidação da massa insolvente, mas também, após o encerramento da insolvência, podem aspirar à repartição do saldo proveniente da cessão do rendimento disponível do devedor nos cinco anos que se seguem a esse encerramento, não sendo despeciendos, ainda, os potenciais ganhos directos e indirectos, plausíveis no processo de fresh start do devedor que o sistema económico parece preferir à sua inabilitação improdutiva.
É, portanto, do equilíbrio e da ponderação dos interesses conflituantes na insolvência que a exoneração do passivo restante há-de provir e recordando que sua apreciação e concessão pode ter lugar em momentos distintos, decerto que a que tem lugar no despacho inicial, deve ser cautelosa, não só porque serão, naturalmente, parcos os elementos que sem margem para dúvida a podem inviabilizar, mas também porque o prosseguimento da paralela liquidação universal do património do devedor permite conjugá-la, por exemplo, com a decisão quanto à qualificação da insolvência que lhe é muito próxima no que se refere à boa fé e à etica das condutas do insolvente.
Em termos gerais, o procedimento inicia-se com a formulação do pedido de exoneração que, se não for, liminarmente indeferido, é objecto de despacho inicial a determinar que o devedor fica obrigado à cessão do seu rendimento disponível ao fiduciário no período de cessão de 5 anos, posterior ao encerramento do processo de insolvência – artº 239,1 e 2. No final desse período decide o juiz sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor (artº244º,1); e se a exoneração for concedida dá-se a extinção de todos os créditos que ainda subsistam, com as excepções a que se alude no artº245º.
Constituem fundamentos do indeferimento liminar da exoneração do passivo restante, os enunciados nas diversas alíneas do artº238º que compreendem comportamentos, situações ou condutas do devedor, anteriores ou contemporâneas do processo de insolvência que, como refere Carvalho Fernandes, Colectânea De Estudos Sobre a Insolvência, 276 e 277, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular…é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém”, fundamentos que, segundo Assunção Cristas ( Novo Direito de Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 264), exigem ao devedor um comportamento anterior e actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, aferindo-se da sua boa conduta, dando-se aqui especial cuidado na apreciação, apertando-a, com ponderação de dados objectivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta.
Daqueles fundamentos, destacamos, aquele a que se alude na al.d) do citado artº238º, isto é, a tardia apresentação à insolvência por parte da devedora que a ela não está, legalmente, obrigada mas que a deve observar se pretende beneficiar da exoneração do passivo.
Nessa alínea prescreve-se o seguinte:
1 – O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
……………
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
…………..
Fundamento algo complexo, desmultiplica-se em requisitos de verificação cumulativa de avaliação conjunta, em ordem ao indeferimento da exoneração:
a)o incumprimento pelo devedor da obrigação de apresentação à insolvência ou a abstenção dessa apresentação nos seis meses subsequentes à situação de insolvência,
b) a verificação de prejuízos para os credores daí decorrentes e
c) o conhecimento pelo devedor da falta de perspectiva séria de melhoria de sua situação económica.
Em torno deste segmento do normativo em questão, uma corrente jurisprudencial vem defendendo que, ínsitos à apresentação intempestiva do devedor, se tornam evidentes os prejuízos dos credores, dado o avolumar de seus créditos com o atraso em tal apresentação, desde logo, face ao vencimento dos respectivos juros e consequente aumento do passivo do devedor.
De facto, o retardamento da apresentação de pessoa singular à insolvência que a essa apresentação não está obrigada pela lei, só por si, não tem consequências danosas para o devedor.
De forma consentânea e congruente com o disposto no nº5 do artº186º, onde se não considera que o retardamento na apresentação por banda da pessoa singular, ainda que determinante de agravamento de sua situação económica, não serve de fundamento à qualificação como culposa da própria insolvência, também naquela al.d), aqui em análise, se estatui que essa apresentação tardia, só por si, não constitui fundamento de indeferimento da exoneração do passivo. Só o integrará se, além dela, nomeadamente, se verificar pejuízo dos credores. Por outras palavras, e, citando autores que são referência na matéria, “para além da não apresentação à insolvência, a relevância deste comportamento do devedor, para efeito de indeferimento liminar, depende ainda…de haver prejuízo para os credores…”- cfr Luís Carvalho Fernandes, in Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, no estudo sobre A Exoneração do Passivo Restante…, p. 280.
E continuando: “Só se compreende esta autonomização se este prejuízo não resultar automaticamente do atraso, mas sim de factos de onde se possa concluir que o devedor teve uma conduta ilícita, desonesta, pouco transparente e de má fé e que dessa conduta resultaram prejuízos para os credores.”
Factos, crê-se, na linha daqueles que integram as condutas ou comportamentos e situações a que se reportam os demais fundamentos do indeferimento da exoneração das alíneas b), c), e), f) e g) do citado artº238º ou, por exemplo, os que autorizam as presunções de insolvência culposa previstos no já citado artº186º, todos eles, relacionados com os “deveres associados ao processo de insolvência” a que já se aludiu e que, repete-se, dão especial ênfase à ética e transparência das condutas e actos do devedor com repercussão sobre a massa insolvente.
Sumariando:
A exoneração do passivo restante constitui mecanismo cujo objectivo final é a extinção das dívidas e a libertação do devedor de parte de seu passivo, de forma mais breve e leve que a prescrição tradicional, correspondendo ao objectivo do legislador de facultar ao devedor singular uma segunda oportunidade, dando primazia à sua reabilitação produtiva;
O retardamento da apresentação de pessoa singular à insolvência ( que a essa apresentação não esteja obrigada pela lei), só por si, não é fundamento para o indeferimento liminar da exoneração do passivo e só o será, se, nomeadamente, lhe sobrevier o pejuízo dos credores da responsabilidade do devedor apresentante;
Este prejuízo deve ser efectivo e portanto integrante de factos carreados e demonstrados por credores ou pelo administrador da insolvência pois, sendo impeditivos do direito do devedor, natural será que sobre tais sujeitos recaia o respectivo onus probandi;
Não há assim prejuízo que, automaticamente, decorra do retardamento na apresentação, nomeadamente, pelo facto de os juros associados aos créditos em dívida se acumularem no decurso desse atraso, pois que tais juros, no actual regime da insolvência, se continuam a contar mesmo depois da apresentação.


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