Apresentação à insolvência

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4233/12.9TJLSB-C.L1-2
Relator:JORGE LEAL
Descritores:APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PRAZO
ÓNUS DA PROVA
PREJUÍZO RELEVANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento:RL
Data do Acordão:20-02-2014
Votação:UNANIMIDADE
Texto Parcial:S
Meio Processual:APELAÇÃO
Decisão:PROCEDENTE
Sumário:I - A omissão da apresentação à insolvência no prazo de seis meses após a verificação dessa situação (de insolvência) expõe o devedor à possibilidade de lhe ser liminarmente denegado o benefício de exoneração do passivo restante, se adicionalmente se provar que com isso causou prejuízo aos credores e que sabia, ou não podia ignorar sem culpa grave, que não existia qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica (alínea d) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE).
II - O ónus da prova desses factos, impeditivos do direito do devedor à pretendida exoneração e fundamentadores do indeferimento liminar dessa pretensão, não recai sobre o devedor mas sobre os credores ou o administrador de insolvência, sem prejuízo do conhecimento oficioso que deles tenha o juiz.
III - O simples alongamento da situação de mora no cumprimento das obrigações não basta para dar por corporizado o prejuízo relevante para os efeitos previstos na alínea d) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 14.11.2012 “A” apresentou-se à insolvência nos Juízos Cíveis de Lisboa, requerendo que fosse declarada a sua insolvência, com exoneração do passivo restante.
Em 21.01.2013 foi proferida sentença em que se declarou a requerente em situação de insolvência.
Ouvidos sobre o requerimento de exoneração do passivo restante, o administrador de insolvência pronunciou-se a favor e os credores Fazenda Nacional (representada pelo M.ºP.º), “B”, S.A. e Banco “C” S.A. pronunciaram-se contra.
Em 13.03.2013 foi proferido despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Em 28.3.2013 a requerente apelou desta decisão, tendo apresentado motivação em que formulou as seguintes conclusões:
(…)
Não houve contra-alegações.
O tribunal a quo pronunciou-se pela inexistência de nulidade na decisão recorrida e admitiu a apelação, com subida imediata para esta Relação, em separado e efeito meramente devolutivo.
O recurso deu entrada nesta Relação em 09.01.2014.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
A apelante suscita, neste recurso, as seguintes questões: consideração de factos para além dos consignados na decisão recorrida; nulidade da decisão recorrida por o juiz a quo ter invocado e conhecido de matéria de que não podia conhecer; verificação dos pressupostos do indeferimento liminar do requerimento de exoneração do passivo restante.
Primeira questão (aditamento de factos)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de facto
A) A Insolvente “A” nasceu em 26.05.1979, e casou em 05.10.1996 com “D”, de quem se divorciou em 04.05.1999.
B) A I. “A” casou em 19.07.2000 com “D”, com precedência de convenção de separação de bens.
C) Em 26.11.2001 a I. “A” comprou o direito de propriedade do imóvel fracção autónoma designada pela letra B, correspondente ao 1º andar, do prédio sito na Rua ..., Lote D1. em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob a ficha nº .../20010316-B da freguesia de ..., pelo preço declarado de € 86.192,28, aquisição objecto de registo em 27.11.2001.
D) Em 17.01.2006 foi instaurado contra a Insolvente, processo executivo fiscal para cobrança de Imposto Municipal de Sisa no valor de € 30.346,02.
E) Em 15.05.2006 Banco “B”, SA como mutuante, e a I. “A” e “D” como mutuários, acordaram contrato de mútuo da importância de € 119.751,31, a amortizar em 301 prestações, de capital e juros, mensais e sucessivas.
F) Para garantia do crédito provado em E), foi constituída garantia sobre o imóvel fracção autónoma letra “B”, correspondente ao 1º andar do prédio sito na Rua ..., nº ..., Lote D-1, 0000-000 Lisboa -- então avaliado em € 200.000,00.
G) Em 15.05.2006 Banco “B”, SA como mutuante, e a I. “A” e “D” como mutuários, acordaram contrato de mútuo da importância de € 78.880,04, a amortizar em 301 prestações, de capital e juros, mensais e sucessivas.
H) Para garantia do crédito provado em G), foi constituída garantia sobre o imóvel fracção autónoma letra “B”, correspondente ao 1º andar do prédio sito na Rua ..., nº ..., Lote D-1, 0000-000 Lisboa -- então avaliado em € 200.000,00.
I) Em 23.07.2008 Banco “B”,SA como mutuante, e a I. “A” como mutuário, acordaram contrato de mútuo da importância de € 41.400,00, a amortizar em 264 prestações, de capital e juros, mensais e sucessivas.
J) Para garantia do crédito provado em I), foi constituída garantia sobre o imóvel fracção autónoma letra “B”, correspondente ao 1º andar do prédio sito na Rua ..., nº ..., Lote D-1, 0000-000 Lisboa -- então avaliado em € 200.000,00.
L) em 28.10.10, Banco “C”,SA como mutuante, e a I. “A” e “D” como mutuários, acordaram o contrato de empréstimo nº ... no montante de € 14.166.72, com vencimento para 15.02.11, no valor de capital, juros e encargos de € 14.990,28, que então não foi cumprido pelos mutuários.
M) em 22.11.10 , Banco “C”,SA como mutuante, e a I. “A” e “D” como mutuários, acordaram o contrato de empréstimo nº 000306330004096 no montante de € 18.850,00, com vencimento para 15.02.11, no valor de capital, juros e encargos de € 20.443,26, que então não foi cumprido pelos mutuários.
N) Desde 1991, a I. “A” trabalhava como assalariada para Casa ..., auferindo uma remuneração mensal líquida de cerca de € 600,00, e desde Abril de 2010 até Dezembro de 2011 (quando cessou a relação) não lhe foram pagas as respectivas remunerações, num total de € 15.979,84.
O) Em 05.04.11 não foi paga/reembolsada a prestação vencida no âmbito do provado em I), como não foram pagas/reembolsadas as vencidas posteriormente.
P) Em 05.05.2011 não foi paga/reembolsada a prestação vencida no âmbito do provado em E), como não foram pagas/reembolsadas as vencidas posteriormente.
Q) Em 05.05.2011 não foi paga/reembolsada a prestação vencida no âmbito do provado em G), como não foram pagas/reembolsadas as vencidas posteriormente.
R) em 22.06.2011 Banco “C”,SA como mutuante, e a I. “A” e “D” como mutuários, acordaram o designado “Acordo de Regularização de Responsabilidades”, que as dívidas indicadas em L) e M) se consolidariam (em 22.06.11) em € 35.100,00, a reembolsar/pagar em 84 prestações, mensais, constantes e sucessivas, no valor indicativo de € 589,98 cada, vencendo-se a primeira no dia 15.07.2011.
S) Em 15.07.2011 não foi paga/reembolsada a prestação vencida no âmbito do provado em R), como não foram pagas/reembolsadas as vencidas posteriormente.
T) Em Agosto de 2011 a I. e o marido deixaram de viver juntos, ficando a I. com a guarda de dois filhos menores.
U) Em 30.05.2012 a I. “A” divorciou-se (de “D”).
V) De 2010 a Maio de 2012 foi o ex-marido da I. quem suportou as despesas do agregado familiar, composto pela I. e dois filhos menores à sua guarda, incluindo a prestação do empréstimo da habitação (a “B”).
X) Desde 08.05.12 está pendente a acção executiva nº .../12.0YYLSB para pagamento da quantia indicada em R), sendo o pedido exequendo de € 39.211,16, e juros moratórios vincendos sobre € 35.100,00.
Z) Desde 20.06.12 está pendente a acção executiva Proc.nº .../12.2YYLSB, para pagamento das quantias indicadas em O), P), e Q), sendo os pedidos exequendos respectivamente de € 38.100,00 e juros moratórios vincendos, de € 105.914,59 de capital, e juros moratórios vincendos, e de € 68.372,22 de capital, e juros moratórios vincendos.
A1) (Já em 2012) e para garantir o seu crédito de remunerações contra Casa ... a I. “A” requereu providência cautelar de arresto (processo nº n.º .../12.0TTLSB do 2.º juízo, 2.ª Secção do Tribunal de Trabalho de Lisboa) dos bens da mesma, em que até à data não foi arrestado qualquer bem designadamente conta bancária ou móvel, a que fez seguir acção principal ainda sem decisão..
B1) Nesta data a I. “A” é titular do direito de propriedade do imóvel fracção autónoma designada pela letra B, correspondente ao 1º andar, do prédio sito na Rua ..., Lote D1. em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob a ficha nº .../20010316-B da freguesia de ..., onde reside.
C1) Desde Janeiro de 2012 a esta data a I. “A” encontra-se desempregada, estando inscrita no Centro de Emprego de Lisboa, e sendo beneficiária de subsídio de desemprego, no valor mensal de € 419,10.
D1) A I. não possui outros rendimentos além do subsídio de desemprego.
E1) A I. tem a seu cargo dois filhos menores, com quem constitui o agregado familiar, estando o pai daqueles obrigado a pagar pensões mensais somando € 400,00.
F1) Em 14.11.12 a I. propôs esta acção.
O Direito
A modificabilidade da decisão de facto pela Relação está regulada no art.º 712.º do Código de Processo Civil (de 1961, em vigor à data da decisão recorrida e da interposição do recurso e por isso aplicável, por contraposição com o CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.6). Nos termos desse artigo, a Relação pode alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Nos termos do art.º 685.º-B do Código de Processo Civil, quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. E, tratando-se de meios probatórios que tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição (n.º 2 do art.º 685.º-B).
No caso dos autos, não foi produzida prova pessoal sobre a matéria da exoneração do passivo restante, tendo a decisão sobre a matéria de facto assentado nos elementos documentais juntos ao processo.
O facto que a apelante entende que deve ficar consignado, por “constar dos autos” (conclusão 7 da apelação) é o de que (extirpadas considerações que são meros juízos de valor) nunca deixou de procurar emprego estável, tendo agido numa perspetiva de melhoria da sua situação económica.
É certo que no requerimento inicial a requerente alegou que nos últimos meses procurara emprego, sem sucesso (art.º 23.º). Porém, tal facto não consta de entre os dados como provados pelo tribunal a quo. E embora esta Relação não veja motivos para dar como verdadeiro o contrário do afirmado pela requerente, também não encontra nos autos elementos que permitam ir mais além do tribunal a quo, sendo certo que a apelante também não os aponta.
Mantém-se, assim, o dado como provado pelo tribunal a quo.
Segunda questão (nulidade da decisão recorrida)
A apelante defende que a decisão recorrida “enferma de nulidade por invocação e conhecimento de matéria que não podia conhecer, pois não está provado que a recorrente se tenha apresentado tardiamente à insolvência, e muito menos que o alegado atraso tenha provocado qualquer prejuízo aos credores nesse período.”
Trata-se, assim, da nulidade prevista no art.º 668.º n.º 1 alínea d), parte final, do CPC (de 1961), ou seja, quando o juizconheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Vejamos. Conforme se apreciará mais aprofundadamente infra, a exoneração do passivo restante será indeferida liminarmente pelo juiz se se verificar algumas das circunstâncias previstas no art.º 238.º do CIRE. Entre elas conta-se o facto de o devedor se ter abstido de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, causando com isso prejuízo aos credores, e sabendo ou não devendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica (alínea d) do n.º 1 do art.º 238.º).
Ora, a ser assim, cabe ao juiz verificar se a inviabilidade da exoneração pedida é manifesta. E ao analisar os respetivos pressupostos, decidindo em conformidade, o juiz não ultrapassa limites mas, antes, exerce a fiscalização que a lei lhe impõe, sob pena de incorrer em nulidade por omissão. Tanto mais que, na assembleia de credores realizada, documentada a fls 202, os credores “B” e “C” afirmaram expressamente que votavam no sentido do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, “nos termos da alínea d) do art.º 238.º do CIRE, com as consequências de prejuízo que consta daquele preceito legal.”
Questão diversa será a apreciação dos factos provados, a avaliação sobre se ficou ou não demonstrada uma situação subsumível à previsão da alínea d) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE. Eventual juízo diverso do do tribunal a quo releva de erro no julgamento de mérito, que não de erro procedimental ou formal, em que se traduz a nulidade apontada.
Nesta parte, pois, a apelação improcede.
Terceira questão (verificação dos pressupostos do indeferimento liminar do requerimento de exoneração do passivo restante)
O processo de insolvência é, nos termos da formulação legal original do CIRE, “um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente” (art.º 1.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, - CIRE - aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de março).
A Lei n.º 16/2012, de 20.4, introduziu algumas alterações ao CIRE, procurando, conforme se realça na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII, “reorientar o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação.
Porém, já na forma inicial do CIRE, em termos que permanecem intocados, no que respeita aos insolventes pessoas singulares, e no dizer do Preâmbulo do Código, este “conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante». O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos — designado período da cessão — ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.”
O referido regime, assim exposto no preâmbulo do CIRE, está regulado nos artigos 235.º a 248.º do CIRE.
Dele resulta que no caso da insolvência de pessoa singular de boa fé a proteção dos credores não esgota a finalidade do processo, havendo também, caso tal tenha sido requerido pelo devedor, o objetivo de lhe possibilitar um recomeço da sua vida, exonerando-o das dívidas que, passado um período de esforço sério de pagamento do devido, ainda subsistam. O requerente assumirá o compromisso de não ocultar os rendimentos que aufira e o seu património e de diligenciar pelo exercício de uma “profissão remunerada” (n.º 4 do art.º 239.º do CIRE), entregando ao fiduciário todos os rendimentos que venha a auferir e que constituam rendimento disponível.
O pedido de exoneração deve ser feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, e nunca após a assembleia de apreciação do relatório apresentado pelo administrador de insolvência, podendo o juiz decidir livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio (n.º 1 do art.º 236.º do CIRE).
Além da extemporaneidade do pedido de exoneração, este será indeferido liminarmente se se constatar que nos últimos 10 anos o devedor já usufruíra deste benefício (alínea c)) do n.º1 do art.º 238.º), ou nos três anos anteriores agira fraudulentamente tendo em vista obter créditos ou subsídios de instituições públicas (alínea b) do n.º 1 citado), ou protelara a sua apresentação à insolvência, com prejuízo dos credores e apesar de saber ou não poder ignorar que não existia perspetiva séria de melhoria da sua situação económica (alínea d) do n.º 1 citado), ou existirem indícios seguros de que a insolvência é culposa (alínea e) do n.º 1 citado), ou o devedor tiver sido condenado, nos últimos 10 anos, pelos crimes de insolvência dolosa, frustração de créditos, insolvência negligente ou favorecimento de credores (alínea f) do citado n.º 1), ou o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do CIRE, no decurso do processo de insolvência (alínea g) do citado n.º 1).
Na decisão recorrida ajuizou-se que a insolvente se havia apresentado tardiamente à insolvência, com prejuízo para os credores, ou seja, havia incorrido no fundamento de indeferimento liminar do requerimento de exoneração do passivo restante previsto na alínea d) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE.
O devedor que seja pessoa singular e não seja titular de empresa, não está obrigado a apresentar-se à insolvência (n.º 2 do art.º 18.º do CIRE). Porém, a omissão da apresentação à insolvência no prazo de seis meses após a verificação dessa situação (de insolvência) expõe o devedor à possibilidade de lhe ser liminarmente denegado o referido benefício de exoneração do passivo restante, se adicionalmente se provar que com isso causou prejuízo aos credores e que sabia, ou não podia ignorar sem culpa grave, que não existia qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
Sendo certo que o ónus da prova de todos esses factos, impeditivos do direito do devedor à pretendida exoneração e fundamentadores do indeferimento liminar, não recai sobre o devedor mas sobre os credores ou o administrador de insolvência (art.º 342.º n.º 2 do Código Civil; v.g., STJ, 14.02.2013, processo 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1, consultável emwww.dgsi.pt), sem prejuízo do conhecimento oficioso que deles tenha o juiz.
Nos termos do n.º 1 do art.º 3.º do CIRE, “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.” Considerando-se como indicativas dessa situação, nomeadamente, a “suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas” (alínea a) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE), “falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações” (alínea b) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE), “insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor” (alínea e) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE), “incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de “prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ouresidência” (parágrafo iv) da alínea g) do n.º 1 do art.º 20º do CIRE).
A apelante/requerente apresentou-se à insolvência em 14.11.2012. Ora, resulta das alíneas E), F), G), H), I), J), O), P) e Q) da matéria de facto que a partir dos meses abril e maio de 2011 a requerente e o seu marido cessaram o pagamento dos três empréstimos bancários que haviam contraído, no valor total de cerca de € 240 000,00, com constituição de hipoteca sobre a casa de morada de família, de que a requerente era e é proprietária e onde residia e reside. Assim, decorridos seis meses sobre a cessação desses pagamentos, ou seja, em novembro de 2011, verificava-se, objetivamente, uma situação indicativa de que a requerente se encontrava em estado de insolvência. E a partir de maio de 2012 a requerente incorreu na situação de omissão de apresentação à insolvência a que se fez referência supra.
Concorda-se, pois, na falta de outros elementos que suportem juízo contrário, com a decisão recorrida na parte em que considerou que a requerente se apresentou à insolvência tardiamente.
Resta verificar se se verificam os outros dois pressupostos do motivo de indeferimento liminar da exoneração do passivo restante previsto na alínea d) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE: prejuízo para os credores; conhecimento pelo devedor, ou não podendo ignorar sem culpa grave, de que não existia qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
Quanto ao prejuízo causado aos credores em virtude da demora na apresentação à insolvência. A jurisprudência tem entendido, cremos que acertadamente, que o simples alongamento da situação de mora no cumprimento das obrigações, obrigações que em regra se traduzem em prestações pecuniárias, que a lei automaticamente comina com o vencimento de juros de mora (art.º 801.º do Código Civil), não basta para dar por corporizado o prejuízo relevante para os efeitos previstos na alínea d) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE, sob pena de o aludido requisito, expressamente destacado pelo legislador, ser reputado de inútil, em colisão com a presunção de adequabilidade da expressão do pensamento legislativo consagrada no n.º 3 do art.º 9.º do Código Civil (cfr., v.g., acórdãos do STJ, de 21.3.2013, processo 1728/11.5TJLSB-B.L1.S1 e de 14.02.2013, processo 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1). Para além da mora no cumprimento das obrigações, que automaticamente decorre do atraso na apresentação do devedor à insolvência, deverão os credores ou o administrador da insolvência alegar e demonstrar factos concretos que convençam o tribunal que o atraso do devedor na sua apresentação à insolvência foi acompanhado ou implicou prejuízos para os credores, factos que poderão, por exemplo, ser a constituição de mais dívidas por parte do devedor ou a dissipação ou consumo de ativos do seu património.
Ora, in casu nada de concreto foi alegado ou se mostra provado. Na assembleia de credores estes não acompanharam o seu voto desfavorável à exoneração do passivo restante da alegação de factos concretos que traduzissem o invocado prejuízo. Na decisão recorrida sustenta-se a verificação da ocorrência de prejuízo dos credores com a seguinte asserção: “Então verifica-se que o insolvente não cumpriu o prazo de 6 meses após a sua insolvência para requerer esta, isto é até 6 meses depois de março de 2011, só o fazendo 20 meses depois em Novembro de 2011 (alínea F1), o que impediu que logo em Junho de 2011 (alínea R)), Banco “C” a ter-se apercebido da incapacidade financeira para solver os seus compromissos, em concreto para com “B” (alínea O a Q)), não lhe teria disponibilizado os meios ínsitos no acordo de consolidação de 22.06.2011, actuação da I. causal do prejuízo para estes traduzido nos valores que são reembolsados, já vista a frustração na totalidade ou parte do crédito.”
Ora, a verdade é que da matéria de facto provada não consta que no “acordo de regularização de responsabilidades” celebrado entre a ora requerente, o seu marido e o Banco “C” em 22.6.2011, referido na alínea R) da matéria de facto, o banco tenha concedido mais financiamento aos devedores. Por outro lado, nessa data ainda não se podia sequer dar como objetivamente indiciada a situação de insolvência da requerente (tal só ocorreu em novembro de 2011, conforme exposto supra). Finalmente, também não está provado, nem tal foi sequer alegado pelo Banco “C”, que este agiu na ignorância da situação económico-financeira da requerente e do seu marido.
Não se vê, assim, que esteja demonstrada a ocorrência do prejuízo para os credores, decorrente do atraso da devedora na apresentação à insolvência, invocado na decisão recorrida para indeferir liminarmente o requerimento de exoneração de passivo restante.
Na decisão recorrida faz-se ainda referência ao facto de que a situação económica da requerente não lhe permitia pagar sequer parte das dívidas, o que sempre tornaria inútil o incidente de exoneração do passivo restante (aí se diz, a dado passo: “em suma, quando nos autos não há elementos que facultem concluir pela capacidade do insolvente para pagar/negociar com os credores parte das suas dívidas, no período da disponibilização de rendimentos, o incidente de exoneração do passivo restante converte-se num acto inútil, que nos está vedado”).
No caso da insolvência de pessoa singular de boa fé, como se viu, a proteção dos credores não esgota a finalidade do processo, havendo também, caso tal tenha sido requerido pelo devedor, o desiderato de lhe possibilitar um recomeço da sua vida, exonerando-o das dívidas que, passado um período de esforço sério de pagamento do devido, ainda subsistam. A lei não faz depender a concessão desse benefício da efetiva existência de rendimento disponível por parte do devedor: este assumirá tão só o compromisso de não ocultar os seus rendimentos e o seu património e de diligenciar pelo exercício de uma “profissão remunerada” (n.º 4 do art.º 239.º do CIRE), entregando ao fiduciário todos os rendimentos que venha a auferir e que constituam rendimento disponível, sendo certo que se trata de obrigação cujo contorno concreto só se definirá durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo (cfr., neste sentido, acórdãos da Relação do Porto, 18.6.2009, processo 3506/08.0TBSTS-A.P1, e de 31.3.2011, 2347/10.9TBVCD.P1, da Relação de Coimbra, 23.02.2010, 1793/09.5TBFIG-2.C1 e da Relação de Guimarães, 07.4.2011, 1101/10.2TBVVD-A.G1, todos na Internet, dgsi-itij).
Veja-se que o encerramento do processo, por insuficiência da massa insolvente, não inutiliza o incidente da exoneração do passivo restante, conforme resulta expressamente do disposto no n.º 6 do art.º 232.º e no n.º 1 do art.º 248.º do CIRE (neste sentido, cfr. acórdãos da Relação do Porto, de 05.11.2007 , processo 0754986 e de 14.6.2011, processo 4196/10.5TBSTS.P1, ambos consultáveis na Internet, dgsi-itij).
O despacho recorrido não deve, pois, subsistir, devendo o tribunal a quo proferir o despacho inicial previsto no n.º 2 do art.º 239.º do CIRE, sendo certo que esta Relação, a quem foi distribuído tão só o processo de recurso em separado, não dispõe de elementos que lhe permitam substituir-se ao tribunal a quo para esse efeito.

DECISÃO
Pelo exposto julga-se a apelação procedente e consequentemente revoga-se o despacho recorrido e determina-se que o tribunala quo profira o despacho inicial previsto no n.º 2 do art.º 239.º do CIRE.
As custas da apelação são a cargo da massa insolvente (art.º 304.º do CIRE).

Lisboa, 20.02.2014

Jorge Manuel Leitão Leal
Ondina Carmo Alves
Eduardo José Oliveira Azevedo
Decisão Texto Integral:

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