Ac. T.R.P. de 13-01-2015, Omissão do dever de apresentação à Insolvência, Qualificação da Insolvência como culposa
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
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Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ANABELA DIAS DA SILVA | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA OMISSÃO DO DEVER DE APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA INDEMNIZAÇÃO | ||
Nº do Documento: | RP20150113376/12.7TYVNG-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 13-01-2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I – Sendo o fundamento da qualificação da insolvência como culposa por parte dos apelantes, a omissão do dever de requerer a declaração de insolvência, tal constitui, nos termos do art.º 186.º n.º 3, al. a) do CIRE, presunção ilidível, mas, não ilidida, “in casu” de culpa grave. II – Tendo os administradores da insolvente efectuado a venda de parte considerável do património da empresa devedora, designadamente máquinas e outro equipamento pesado, a uma sociedade do mesmo ramo, cujos legais representantes tinham estreitas ligações às pessoas que geriam a insolvente, já que dela fazem ou fizeram parte accionistas ou gerentes da insolvente, bem como seus familiares próximos, deixando na empresa devedora apenas equipamento residual e de pouco valor, atento o pouco que vieram a render, em sede de liquidação, para a massa insolvente (cerca de €34.000,00), o que redundou em manifesto prejuízo para a generalidade dos seus credores. E ainda tendo o valor dessas vendas (€68.824,75) acabado por ser depositado numa conta bancária pessoal de uma antiga administradora da insolvente e de um administrador/acionista tendo sido destinado a fazer pagamentos essencialmente, a pessoas relacionadas com os administradores da insolvente e que lhes interessavam, encontram-se reunidos os pressupostos constantes das alíneas a), b), d), f) e g) do n.º2 do art.º 186.º do CIRE. III – O limite da indemnização legal prevista no al. e) do n.º2 do art.º 189.º do CIRE é fixado no montante dos créditos não satisfeitos e não no valor dos actos culposos, concretamente apurados. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Apelação Processo n.º 376/12.7TYVNG-A.P1 Comarca do Porto – V.N.de Gaia – Instância Central – 2.ª Secção Comércio – Juiz 1. Recorrentes – B… e outros Recorrida – Massa insolvente de C…, SA Relatora – Anabela Dias da Silva Adjuntas – Desemb. Ana Lucinda Cabral Desemb. Maria do Carmo Domingues Acordam no Tribunal da Relação do Porto (1.ªsecção cível) I – A credora D…, SA, requereu no Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia (hoje Comarca do Porto – V.N.de Gaia – Instância Central – 2.ª Secção Comércio – Juiz 1) a declaração de insolvência da sociedade C…, S.A, o que sucedeu por sentença de 14 de janeiro de 2013. Oportunamente o Sr. Administrador da Insolvência (AI) juntou o seu parecer quanto à qualificação do incidente da insolvência, concluindo que a mesma devia ser qualificada como culposa, nos termos do disposto no art.º 186.º, n.ºs. 1, 2 als. a), g), i), e 3 al. a) do CIRE, e ser afectados por tal declaração os administradores B…,E…, F… e G…. Os autos foram com vista ao M.ºP.º, o qual, concordou com o parecer do A.I.. Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 188.º, n.º 5 do CIRE, procedendo-se à citação dos requeridos B…, E…, F… e G… e notificação da devedora. O credor H…, trabalhador da insolvente, vem igualmente pedir a qualificação da insolvência como culposa com base no disposto no art.º 186.º, n.º 2, als. a), b), d), f), h) e i) do CIRE. Os requeridos vieram deduzir oposição, pelos motivos ali invocados, concluindo pela qualificação da insolvência como fortuita.
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Foi dado cumprimento ao art.º 188.º, n.º 7 do CIRE.
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Procedeu-se a julgamento com gravação em sistema audio dos depoimentos aí prestados após o que foi proferida sentença que decidiu:“A) Qualificar a insolvência da sociedade C…, SA como culposa, sendo afectados por tal qualificação os ex-administradores da insolvente B…, E… e G…. B) Decretar a inibição dos mesmos para administrarem patrimónios de terceiros por dois anos. C) Decretar a inibição dos mesmos para o exercício do comércio, bem como para ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa por dois anos. D) Declaro perdidos quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas supra identificadas e restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos. E) Condenar as pessoas afectadas supra a indemnizarem os credores da devedora/insolvente no montante dos créditos reconhecidos na sentença de graduação de créditos e não satisfeitos na liquidação, até à força dos seus patrimónios, solidariamente. F) Qualificar a insolvência como fortuita quanto ao requerido F…”.
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Inconformados com tal decisão, dela vieram os requeridos B…, E… e G… recorrer de apelação pedindo que a mesma seja revogada e substituída por outra que, além do mais, não qualifique a insolvência como culposa. Os apelantes juntaram aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões: 1. O seguinte ponto da matéria de facto assente: “nos meses de Maio, Junho e Julho de 2012, a insolvente vendeu à sociedade I…, Lda., os bens constantes das facturas n.º876, 877, 888, 889, 890 e 891, num total de €68.824,75, depositados numa conta aberta em nome da requerida E… e do requerido B…, tendo o dinheiro sido utilizado para fazer pagamentos, essencialmente, a pessoas relacionadas com a insolvente, nomeadamente, a E… e B…” face à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, mormente face ao depoimento do Administrador de Insolvência, em cujo depoimento o tribunal recorrido fundamentou a sua convicção quanto à decisão sobre aquele ponto da matéria de facto, mostra-se incorrectamente julgado. 2. Do depoimento do Administrador de Insolvência que se encontra gravado no sistema informático em uso no tribunal recorrido – (inicio da gravação 05.03.2014 – 09:35:27 e fim da gravação 05.03.2014 – 10:11:36, com esclarecimentos, com inicio em 05.03.2014 – 11:20:03 e fim em 05.03.2014 - 11:29:51) – conjugado com o Parecer elaborado nos termos do artigo 188.º do CIRE, resulta que o mesmo não considerou o teor das facturas 876, 877, 888, 889, 890 e 891 por as reputar de desconformes com a verdade e que não apurou o valor dos bens constantes daquelas facturas; 3. Daquele depoimento resulta ainda que o A.I., não conheceu de todos os movimentos efectuados pela insolvente no ano de 2012, nomeadamente dos pagamentos efectuados após Maio de 2012, data da primeira das facturas referidas na conclusão 1.ª, por não ter consultado a respectiva contabilidade, a relativa ao exercício daquele ano, não tendo, assim, apurado de todos os movimentos, nomeadamente dos pagamentos, efectuados pela insolvente no referido ano de 2012. 4. Em razão da prova produzida em audiência de discussão e julgamento em que o Tribunal recorrido fundamentou a sua convicção probatória, deve a apontada matéria de facto ser alterada no seguinte sentido: nos meses de Maio, Junho e Julho de 2012, a insolvente vendeu à sociedade I…, Lda., os bens constantes das facturas n.ºs 876, 877, 888, 889, 890 e 891; 5. Alterada a matéria de facto no sentido aqui propugnado, inexiste fundamento para qualificar a insolvência como culposa, por não verificação dos requisitos elencados no n.º 1 e 2 do artigo 186.º do CIRE 6. A sentença recorrida fundamenta ainda a decisão de qualificar a insolvência como culposa na omissão do dever de requerer a declaração de insolvência – n.º 3, alínea a) do artigo 186.º do CIRE; 7. A matéria de facto assente é insuficiente para apurar o nexo de causalidade entre a omissão culposa do dever de requerer a declaração de insolvência e a insolvência, o qual podendo presumir-se, terá que ser demonstrado. 8. Com efeito, daquela factologia não resulta demonstrado que a omissão do dever de apresentação à insolvência tenha contribuído para o agravamento da situação de insolvência, tanto mais que, daquela matéria de facto, até resulta que no ano de 2012, houve uma ligeira recuperação da insolvente, uma vez que se no exercício de 2011 apresentou resultados negativos no valor de € 316.929,00, no final do período de 2012 já apresentou um saldo nulo. 9. A constatação das dificuldades da insolvente de cumprir com algumas das suas obrigações, nomeadamente do pagamento de créditos salariais e fiscais e da verificação de resultados líquidos negativos no exercício de 2011, não impunham aos administradores da insolvente a imediata obrigação de requererem a declaração de insolvência, uma vez que existiam fundadas expectativas, alicerçadas em possíveis adjudicações, uma das quais no valor de 3.157.757, 33 €, (em consórcio com outra empresa) que veio a concretizar-se já depois de declarada a insolvência que permitiram a satisfação daquelas obrigações e o reequilíbrio da situação económico-financeira da devedora; 10. Perante os resultados negativos de 2011 e a expectativa da adjudicação daquela importante empreitada, sempre se impunha aos administradores da insolvente a devida ponderação sobre a continuidade da actividade ou a apresentação à insolvência que a intervenção do credor que a requereu deitou por terra; 11. Os afectados não violaram o dever de requererem a declaração de insolvência, sendo certo que dos autos não resulta que a apresentação não atempada à insolvência tenha contribuído para a sua verificação ou para o seu agravamento, não estando, no caso, verificados os requisitos exigidos pelo n.º 1 e alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE para a qualificação da insolvência como culposa. Assim não se entendendo; 12. A decisão que condenou os afectados pela insolvência a indemnizarem os credores da devedora/insolvente no montante dos créditos reconhecidos na sentença de graduação de créditos e não satisfeitos na liquidação, até á força dos seus patrimónios, solidariamente, não lançou mão do disposto no n.º 4 do artigo 189.º do CIRE; 13. Da conjugação das alienas a) e e) do n.º 2 e do n.º 4, do artigo 189.º do CIRE, resulta que a responsabilidade que gera o dever dos afectados de indemnizarem os credores da insolvente, há-de resultar da violação dos direitos destes consubstanciada nos factos que determinaram a qualificação da insolvência como culposa, desde que esses factos sejam causa concreta do dano. 14. A medida daquela indemnização terá que corresponder aos prejuízos sofridos pelos credores. 15. Tendo em conta que a qualificação da insolvência como culposa, se fundamenta, por um lado, na venda dos bens discriminados nas facturas n.ºs 876, 877, 888, 889, 890 e 891 e, por outro lado, na omissão do dever de apresentação à insolvência, a indemnização a fixar não pode ultrapassar o valor daqueles bens, adicionada do valor correspondente aos danos advenientes da omissão do dever de apresentação à insolvência; 16. Na sentença recorrida não foi fixado o grau de culpa de cada um dos afectados; 17. O grau de culpa de cada um dos afectados deve ser fixado pelo juiz na sentença que qualifique a insolvência, tal como determina a alínea a) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, porquanto o grau de culpa releva para efeitos da fixação daquela indemnização. 18. O tribunal recorrido ao condenar os afectados nos termos da alínea e) do artigo 189.º sem fixar o valor das indemnizações devidas e sem os critérios a utilizar para a quantificação daquela indemnização, faz uma errada interpretação do referido artigo 189.º
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O M.ºP.º juntou aos autos as suas contra-alegações onde pugna pela confirmação da decisão recorrida. II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos: 1. Em 23.03.2012, a credora D…, S.A., veio requerer a insolvência a sociedade C…, S.A. 2. Citada, a sociedade requerida veio a fls. 48 e ss. deduzir oposição. 3. Foi realizada audição de partes, tendo sido solicitado que os autos aguardassem até 15.09.13, cfr. fls. 81 e 82. 4. Por sentença proferida em 14.01.2013, foi decretada a insolvência da sociedade, com carácter pleno, já transitada em julgado. 5. Por assembleia de credores realizada em 11.03.2013, os credores deliberaram o encerramento e a liquidação imediata do activo da empresa. 6. Foram apreendidos bens móveis (veículos automóveis, máquina perfuradora, bombas, equipamentos) de cuja venda resultou o valor de €35.629,75, estando pendente acção de impugnação de resolução em benefício da massa dos bens vendidos à I…. 7. Foram reclamados créditos por diversas entidades bancárias, fornecedores e Estado, no valor de global de €1.144.491,82, com datas de vencimento desde à mais de dois anos. 8. A sociedade insolvente iniciou actividade em 23.11.1992, com um capital social de €350,000, tendo como administradores, B… e F…. 9. Por deliberação de 31.05.05, foram designados como membros do Conselho de Administração, B… (presidente), F… (vice-presidente) e J… (vogal). 10. Por deliberação de 27.03.09, foram designados como membros do Conselho de Administração, B… (presidente), G… (vice-presidente) e E… (vogal). 11. O requerido F… cessou funções de vice-presidente do conselho de administração em 2009 e não mais foi visto na insolvente. 12. A insolvente colaborou com o A.I. fornecendo-lhe todos os elementos solicitados. 13. Nos meses de Maio, Junho e Julho de 2012, a insolvente vendeu à sociedade I…, Lda., os bens constantes das facturas n.ºs. 876, 877, 888, 889, 890 e 891, num total de €68.824,75, depositado numa conta aberta em nome da requerida E… e do requerido B…, tendo o dinheiro sido utilizado para fazer pagamentos, essencialmente, a pessoas relacionadas com a insolvente, nomeadamente, a E… e B…. 14. Estas vendas foram objecto de resolução por parte do A.I. e de impugnação de resolução, cfr. apenso E. 15. A empresa C… em finais de 2011 já estava em situação de insolvência, mas em 2010 já estava em situação difícil, com a quebra de trabalhos adjudicados. 16. O administrador e accionista da insolvente, B…, e o accionista da insolvente, F…, foram gerentes da adquirente dos bens supra mencionados, I…, até 22.05.12, data em que cessaram funções de gerente nesta. 17. No exercício de 2011 a sociedade insolvente apresentou resultados líquidos negativos no valor de €316.929,00 e um saldo nulo no final do período de 2012. III – Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do N.C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida. Sendo que ao presente recurso já é aplicável o regime processual decorrente do N.C.P.Civil, por a decisão em crise ter sido proferida depois de 1 de Setembro de 2013.
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Ora, visto o teor das alegações dos apelantes são questões a decidir no presente recurso:1.ª – Da impugnação da decisão da matéria de facto. 2.ª – Da omissão do dever de apresentação à insolvência. 3.ª – Da indemnização.
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Na decisão recorrida, como já se referiu, considerou-se a insolvência culposa por força do disposto nas als. a) i) e g), 2.ª parte do n.º2 e n.º 3 al. a) do art.º 186.º do CIRE, relativamente aos apelantes e ex-administradores da insolvente B…, E… e G….*
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1.ªquestão – Impugnação da decisão da matéria de facto.Defendem os apelantes que a 1.ª instância errou aquando da apreciação da prova produzida nos autos, entendendo que não foi feita qualquer prova da realidade integral do facto constante do ponto 13 da fundamentação de facto da sentença recorrida, chamando à colação o depoimento/esclarecimentos prestados pelo administrador da insolvência, pedindo a reapreciação deste meio de prova e consequentemente a alteração da decisão dada a tal questão de facto. Ora, a 1.ª instância deu como provado que: - “Nos meses de Maio, Junho e Julho de 2012, a insolvente vendeu à sociedade I…, Lda., os bens constantes das facturas n.ºs. 876, 877, 888, 889, 890 e 891, num total de €68.824,75, depositado numa conta aberta em nome da requerida E… e do requerido B…, tendo o dinheiro sido utilizado para fazer pagamentos, essencialmente, a pessoas relacionadas com a insolvente, nomeadamente, a E… e B…”. O tribunal recorrido fundamentou detalhadamente essa decisão escrevendo-se: “A convicção do tribunal na resposta aos factos assentes baseou-se: Nos esclarecimentos prestados pelo A.I. nomeado nos autos, que referiu que não conseguiu apurar do destino do dinheiro, produto da venda dos bens à I… em Maio, Junho e Julho de 2012, tendo o mesmo sido utilizado para fazer pagamentos as pessoas relacionadas com a insolvente. (…) - No depoimento da testemunha K…, indicada pelo A.I e pelos requeridos, trabalhou na insolvente desde 1993 até 2012. Referiu que o valor de €68.824,75 obtido na venda efectuada em Maio a Julho de 2012, pensa que não estará longe da realidade e pensa que o mesmo terá sido para pagar os salários em atraso. (…) Referiu aquele, em relação à venda de bens á I… que, foi um bom negócio e a actividade normal da empresa não ficou afectada, pois o volume de obras que tinham não precisavam de tanto equipamento. (…) Confrontado com os docs. de fls. 311 e ss. referiu que se trata de duas contas – uma em nome de B… e outra em nome da E…, para onde entrou o dinheiro da venda dos bens à I…, para impedir que o dinheiro fosse para os bancos. - Baseou-se ainda nos documentos juntos aos autos (principal e apensos)”.
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Ora, no que concerne à impugnação da decisão de facto proferida em 1.ª instância, importa atentar no que dispõe no art.º 662.º do C.P.Civil.Como refere F. Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, pág. 127, resulta de tal preceito que “...o direito português segue o modelo de revisão ou reponderação…”, ainda que não em toda a sua pureza, porquanto comporta excepções, as quais se mostram referidas pelo mesmo autor na obra citada. Os recursos de reponderação, segundo o ensinamento do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudo Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 374, “...satisfazem-se com o controlo da decisão impugnada e em averiguar se, dentro dos condicionalismos da instância recorrida, essa decisão foi adequada, pelo que esses recursos controlam apenas - pode dizer-se - a “justiça relativa” dessa decisão”. Por isso, havendo gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, como no presente caso se verifica, temos que, nos termos do disposto no art.º 662.º n.º 1 do C.P.Civil, o Tribunal da Relação deve alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, desde que, em função dos elementos constantes dos autos (incluindo, obviamente, a gravação), seja razoável concluir que aquela enferma de erro. Não nos podemos esquecer de que ao reponderar a decisão da matéria de facto, que, apesar da gravação da audiência de julgamento, esta continua a ser enformada pelo regime da oralidade (ainda que de forma mitigada face à gravação) a que se mostram adstritos, entre outros, o princípios da concentração e da imediação, o que impede que o tribunal de recurso apreenda e possa dispor de todo o circunstancialismo que envolveu a produção e captação da prova, designadamente a testemunhal, quase sempre decisivo para a formação da convicção do juiz; pois que, como referem A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, pág. 657, a propósito do “Princípio da Imediação”, “...Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar. ...”. Decorre também do preâmbulo do DL 39/95 de 15.12, que instituiu no nosso ordenamento processual civil a possibilidade de documentação da prova, que a mesma se destina a correcção de erros grosseiros ou manifestos verificados na decisão da matéria de facto, quanto aos pontos concretos da mesma, dizendo-se aí que “a criação de um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto”. Vendo ainda esse preâmbulo, dele consta também que “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede da matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”. Quanto ao resultado da apreciação da prova testemunhal não pode esquecer-se que, nos termos do art.º 607.º n.º 5 do C.P.Civil, “O juiz aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, mantendo o princípio da liberdade de julgamento. E, quanto à força probatória os depoimentos das testemunhas são apreciados livremente pelo tribunal, como resulta do disposto no art.º 396.º do C.Civil. Atendo em atenção o que preceitua o art.º 640.º n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil, ou seja, que é ónus do apelante que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, isto é, não basta ao apelante atacar a convicção que o julgador formou sobre cada uma ou a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, sendo ainda indispensável, e “sob pena de rejeição”, que: a) - Especifique quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; b) - Indique quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto; indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição. Devendo ainda, desenvolver a análise crítica dessas provas, por forma demonstrar que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável, cfr. entre outros, Acs. do STJ de 25.09.2006, de 10.05.2007 e de 30.10.2007, todos in www.dgsi.pt. c) – Indique a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Está assim hoje legalmente consagrada o dever deste tribunal de recurso alterar a decisão de facto proferida em 1.ª instância, devendo para tal reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo ainda em consideração o teor das alegações das partes, para o que terá de ouvir os depoimentos chamados à colação pelas partes. E assim, (re) ponderando livremente essas provas, deve, por força do disposto no art.º 662.º n.º 1 do C.P.Civil, “alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Ou seja, deve o tribunal de recurso formar a sua própria convicção relativamente a cada um dos factos em causa não desconsiderando, principalmente, a ausência de imediação na produção dessa prova, e a consequente e natural limitação à formação desta convicção, o que em confronto com o decidido em 1.ª instância terá como consequência a alteração ou a manutenção dessa decisão. E isso, por se ter concluído que a decisão de facto em causa, (re) apreciada “segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica” cf. Ac. STJ de Proc. n.º 3811/05, da 1ª Secção, citado no Ac. do mesmo tribunal de 28.05.2009, in www.dgsi.pt., corresponde, ou não, ao decidido em 1.ª instância. Por outro lado, deve ainda a Relação, por força do disposto no n.º2 do art.º 662.º do C.P.Civil, “mesmo oficiosamente”: a), a renovação “da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento”; b) a produção de novos meios de prova em segunda instância, “em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada”; c) a anulação da decisão da matéria de facto, mesmo oficiosamente, sempre que não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; d) se determine que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados. No caso em apreço, podemos considerar que os apelantes cumpriram, embora muito deficientemente, aqueles ónus de alegação, cfr. art.º 640.º do C.P.Civil.
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Depois de ouvida, cuidadosamente, a gravação dos depoimentos prestados em audiência, designadamente o chamado à colação pelos apelantes – Administrador da Insolvência - e intuindo dos silêncios, das frases incompletas, das contradições, das imprecisões da exposição e mesmo dos diversos níveis das vozes, que resultam bem audíveis, não se encontram razões que permitam concluir que a decisão sobre a matéria de facto se encontre eivada de erro e, menos ainda, de erro manifesto ou grosseiro.Mas vejamos. O administrador da insolvência, Dr. L…, depôs de forma totalmente isenta, segura e convincente. Segundo mesmo e no que interessa ao facto impugnado por via do presente recurso, o valor das vendas em causa, efectuadas à I…, empresa, cujas legais representantes têm ligações pessoais com os legais representantes da insolvente, foi destinado, em parte, a fazer pagamentos a pessoas relacionadas com os gerentes da insolvente, nomeadamente a E… e G…, e não para fazer pagamentos a quaisquer ou à generalidade dos credores. Mais referiu o depoente que após ter sido decretada a insolvência, o administrador da insolvência deparou-se com uma venda de grande parte do parque de máquinas e de outros bens, que, designadamente os trabalhadores reclamavam existir, tendo vindo a apurar que o valor obtido por tais vendas foi depositado numa conta pessoal de um gerente da insolvente, ou seja, de E….
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Perante o global dos depoimentos, seguros, isentos e convincentes, produzidos nos autos e atento o teor dos vários documentos neles juntos, é nossa firme convicção de que na realidade a insolvente vendeu antes da apreensão de bens para a insolvência à empresa I…, sociedade cujos legais representes tinham ligações pessoais com as pessoas que representavam a insolvente, grande parte ou parte considerável dos bens existentes na empresa, pelo preço de €68. 824,75. Esse valor foi depois depositado numa conta bancária da anterior administradora da insolvente E…, como aliás os ora apelantes confessam expressamente em sede de oposição que deduziram nos autos, e foi de seguida utilizado para fazer pagamentos a esta e a G…, filho de um outro acionista da insolvente e ainda para fazer pagamentos a alguns credores, escolhidos pela insolvente, por exemplo, à testemunha K…, ex-trabalhador da insolvente.Por tudo o que se deixa consignado, considerando ainda o teor da fundamentação da decisão que recaiu sobre a matéria de facto, o teor dos documentos juntos aos autos, e o teor dos depoimentos prestados em julgamento, e como é sabido, devendo o Juiz apreciar livremente todas as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, cfr. art.º 607.º n.º 5 do C.P.Civil, julgamos que a decisão proferida em 1.ª instância sobre os factos em apreço neste recurso deve manter-se inalterada, já que não se vislumbra que a mesma enferme de erro e, muito menos, erro grosseiro ou manifesto, não merecendo esta, por isso, qualquer censura. Improcedem as respectivas conclusões dos apelantes.
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2.ªquestão – Da omissão do dever de apresentação à insolvência.Defendem os apelantes que da matéria de facto assente não resulta demonstrado qualquer facto relativo à relação de causalidade entre a omissão do dever de apresentação à insolvência e a criação, ou o agravamento, do estado de insolvência, pelo que deve ter-se por não verificada a culpa dos afectados na insolvência da sociedade devedora e a insolvência qualificada de fortuita.
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Como se sabe estatui o n.º 1 do art.º 3.º do CIRE, que é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.Como se sabe, o art.º 185.º do CIRE limita a qualificação da insolvência a duas formas: a culposa e a fortuita. E o art.º 186.º, por sua vez, para além de definir o conceito de insolvência culposa, ou seja, “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”, cfr. n.º1, estabelece um conjunto de factos típicos ou factos-índices que, se verificados, conduzem, à qualificação da insolvência como culposa, cfr. n.º 2; e consigna uma presunção de culpa grave dos administradores do devedor que não seja uma pessoa singular, verificadas as situações aí previstas, n.º 3 do citado art.º 186.º do CIRE. Assim, a norma do n.º 1 do art.º 186.º do CIRE. resulta claramente que para a insolvência ser qualificada como culposa é necessário que interceda em termos de causalidade - criando-a ou agravando-a - a actuação do devedor, actuação que tem de ser dolosa ou com culpa grave. E, como vem sendo defendido, quase em unanimidade, na Doutrina e na nossa Jurisprudência, maioritária, entende-se que o n.º 2 do citado art.º 186.º do CIRE estabelece, em termos objectivos (desde que verificados/provados os factos integrantes das circunstâncias previstas em cada uma das suas alíneas), uma presunção “juris et de jure”, (inilidível), de insolvência culposa, o que pressupõe e presume a existência de nexo de causalidade entre a actuação dos administradores do devedor e a criação ou agravamento do estado de insolvência, neste mesmo sentido, enquanto que o n.º 3 desse mesmo preceito consagra apenas, ou pelo contrário, uma presunção “juris tantum”, (ilidível), de culpa grave dos administradores, cfr., Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, volume II, pág. 14 e Menezes Leitão, in “Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado”, pág. 175; Ac. Rel. Coimbra de 28.10.08 e de 24.03.09; da Rel. Lisboa de 22.01.08, da Rel. Porto de 22.05.07, 18.06.07, de 13.09.07, 5.02.09 e de 25.05.09 e da Rel. Guimarães de 20.09.2007, todos in www.dgsi.pt. Dito de outro modo, num caso (o do n.º 2), a verificação dos factos aí, taxativamente, previstos implica necessariamente a qualificação da insolvência como culposa; no outro (o do n.º 3), faz, tão só, presumir a culpa grave dos administradores, os quais podem ilidi-la, fazendo a prova em contrário, cfr. art.º 350.º n.º 2 do C.Civil. No entanto, ainda que provada a culpa grave (nos casos do n.º 3 do art.º 186.º), tal não tem como consequência directa e necessária a qualificação da insolvência como culposa, pois, para que tal possa suceder, é ainda necessário que se demonstre a existência de um nexo de causalidade entre a conduta incumpridora dos administradores e a situação de insolvência do devedor, neste sentido, Acs Rel. Guimarães de 14.06.2006, in CJ, Ano XXXI, Tomo III, pág. 288, da Rel. Porto de 20.10.2007, in CJ, Ano XXXII, Tomo IV, pág. 189 e da Rel. Coimbra de 24.03.2009, in www.dgsi.pt. Resulta, para além disso, do art. 186º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que os afectados com qualificação da insolvência como culposa hão-de ser os administradores de facto ou de direito da sociedade insolvente. No CIRE fez-se a distinção entre sócios e administradores, definindo o art.º 6.º de tal diploma legal quem deve ser considerado administrador. Assim, não sendo o devedor uma pessoa singular, são considerados administradores aqueles a quem incumba a administração ou liquidação da entidade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente (art.º 6.º n.º 1, al. a) do CIRE), resultando da previsão legal que o mero sócio não integra o conceito de administrador em processo de insolvência.
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O Sr. Administrador da Insolvência e o Ministério Público assentaram o pedido de qualificação da insolvência como culposa nas circunstâncias previstas no art.º 186º, n.º 2, als. a), i) e g), 2.ª parte, e n.º3 al. a), do CIRE. A 1.ª instância entendeu que “(…)deveria a empresa ter-se apresentado à insolvência, pelo menos, em 2011 e, eventualmente, apresentar um plano de recuperação, o que não fez, uma vez que a insolvência foi pedida por um credor, pelo que, entendemos que foi violado o dever previsto no artº 186º, n.º 3, al. a) do CIRE” e ainda que “(…)também nos parece que foram violados os deveres previstos nas als. a), b), d), f) e g), (…) o que está, fundamentalmente, em causa é a conduta dos administradores no que respeita ao destino do património da empresa e o prejuízo criado nos credores. (…) Provado ficou que, após diversas diligencias efectuadas pelo A.I., este apurou que nos meses de Maio, Junho e Julho de 2012 a insolvente vendeu à sociedade I…, Lda., da qual eram gerentes o administrador e accionista da insolvente B… e o accionista da insolvente F… até 22.05.12, data em que cessaram funções de gerente naquela, os bens constantes das facturas n.ºs. 876, 877, 888, 889, 890 e 891, num total de €68.824,75, depositado numa conta aberta em nome da requerida E… e do requerido B…, tendo o dinheiro sido utilizado para fazer pagamentos, essencialmente, a pessoas relacionadas com a insolvente, nomeadamente, a E… e B…. Nesta altura, a empresa já estava em situação de insolvência e com o processo de insolvência pendente, o qual foi instaurado em 23.03.12. A venda foi feita entre pessoas que pertenciam, quer à compradora quer à vendedora e, como tal, conhecedoras da situação de dificuldades económicas em que se encontrava a vendedora C…, havendo, nitidamente, a intenção de dissipar o património desta, fazendo com que os bens em causa não integrassem a massa insolvente, prejudicando os credores, impedindo-os de verem os seus créditos pagos. Mais se apurou que, a maior parte do produto da venda, serviu para pagar a pessoas especialmente relacionadas com a insolvente, tais como, E…. Por seu turno, os requeridos não conseguiram provar, como lhes competia, que o produto da venda supra referida tenha sido utilizado para pagar aos credores. Em qualquer uma das factualidades supra e integrativas do n.º 2, als. a), b), d), f), g), do CIRE, estabelece-se de forma automática o juízo de culpa, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes daquelas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento”.
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Conforme já referimos, no n.º 2 do art.º 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estipula-se logo que, nas situações aí previstas, se considera sempre como culposa a insolvência (isto é, causada ou agravada por dolo ou culpa grave do devedor ou dos administradores, desde que provadas objectivamente quaisquer das situações aí indicadas). Em tal disposição legal temos situações objectivas, impossíveis de transformação/geração de qualificação da insolvência como fortuita, porque a lei impõe que mediante a verificação das situações aí previstas a insolvência é sempre considerada culposa (presunções juris et dejure). Como consta do DL 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, “o incidente destina-se a apurar (sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil) se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da actuação dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos) do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência e indicando-se que esta é sempre considerada culposa em caso de prática de certos actos necessariamente desvantajosos para a empresa”. Refere-se, ainda, no mesmo diploma que um dos objectivos da reforma foi a obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilidade dos titulares de empresa, sendo essa a finalidade do incidente, bem como o propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, objectivo que não seria alcançado se não sobreviessem quaisquer consequências sempre que os titulares de empresas hajam contribuído para tais situações.
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Ora, um dos fundamentos invocados na sentença sob recurso para a qualificação da insolvência como culposa foi a omissão por parte dos apelantes do dever de requerer a declaração de insolvência, o que constitui, nos termos do art.º 186.º n.º 3, al. a) do CIRE, presunção ilidível, mas, segundo a sentença, não ilidida, de culpa grave. A aludida omissão constitui presunção (ilidível) de culpa grave, mas não dispensa a prova do nexo de causalidade entre o incumprimento do dever de apresentação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência (n.º 1 do art.º 186.º do CIRE). Assim sendo, no caso há que verificar se houve ou não omissão do apontado e havendo-a, há que apurar-se da ilisão ou não da presunção de culpa grave. Finalmente, não se mostrando ilidida a presunção, da existência ou não do necessário nexo de causalidade. Como se sabe, o devedor, excepto se for uma pessoa singular que não seja titular de uma empresa na data em que se verifique aquela impossibilidade, o que no não nos interessa, deve cumprir o dever de apresentação dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da sua situação de insolvência, ou à data em que devesse conhecê-la, presumindo-se, de forma inilidível, o conhecimento, no caso de devedor titular de empresa, decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento eneralizado de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do n.º 1 do art.º 20.º, cfr. art.º 18.º do CIRE. Está provado nos autos que: -A empresa C… em finais de 2011 já estava em situação de insolvência, mas em 2010 já estava em situação difícil, com a quebra de trabalhos adjudicados. -No exercício de 2011 a sociedade insolvente apresentou resultados líquidos negativos no valor de €316.929,00 e um saldo nulo no final do período de 2012. Em sede de oposição os ora apelantes referiram que a empresa não se apresentou à insolvência porque estavam na expectativa que determinada obra em Viseu lhes fosse adjudicada, o que lhes permitiria um elevado encaixe financeiro que salvaria a empresa do colapso, porém tal não sucedeu e deu origem ao incumprimento geral das obrigações da insolvente. Por outro lado, e como resulta quer do global depoimento das testemunhas inquiridas e do teor das reclamações de créditos juntas aos autos, as dificuldades financeiras da insolvente já se vinham sentindo desde 2010, com a quebra de adjudicação de obras e consequentemente de volume de negócios, aliado ao facto de os maiores créditos estarem vencidos há mais de 12 meses e existirem créditos a trabalhadores vencidos desde 2010, estando a empresa privada de qualquer liquidez no ano de 2011. Destes factos pode-se concluir que ocorreu o incumprimento generalizado susceptível de accionar a presunção “juris et de jure” de conhecimento ou do dever de conhecimento por parte dos recorrentes da situação de insolvência da sociedade. Sendo que como se afirma na decisão recorrida “a não apresentação à insolvência agravou a situação de insolvência, uma vez que, desde pelo menos 2010 e até à declaração de insolvência em 14.01.13, foram-se vencendo novos créditos sem que os anteriores tenham sido satisfeitos, tendo assim, aumentado progressivamente o passivo da insolvente, o que resultou em prejuízo para os credores”.
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No que respeita ao grau de culpabilidade, tradicionalmente, a nossa Jurisprudência e Doutrina costumam distinguir três formas de culpa quanto ao seu grau, isto é, quanto à sua maior ou menor intensidade. Fala-se assim em culpa lata (também denominada grave ou grosseira), culpa leve e culpa levíssima, aferindo-se sob um critério de apreciação objectiva, aferindo-se pelo confronto com um tipo abstracto de pessoa. Quer a culpa grave, quer a culpa leva correspondem a condutas que uma pessoa normalmente diligente – o bonus pater famílias – se absteria. Entendendo por culpa grave a situação de negligência grosseira, em que a conduta do agente só seria susceptível de ser realizada por uma pessoa especialmente negligente, uma vez que a grande maioria das pessoas não procederia da mesma forma. Ou seja, a que consiste em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em princípio adoptam. A culpa grave apresenta-se assim como uma situação de negligência grosseira, “nimia” ou “magnata negligentia”. Portanto podemos concluir que a sociedade ora insolvente, através dos seus então administradores, ora apelantes, os quais tinham perfeito conhecimento da situação de insolvência da sociedade, não requereu a sua insolvência, presumindo-se, assim, nessa omissão, a culpa grave desses seus administradores, ora apelantes, pois que tendo perfeito conhecimento da situação de insolvência da empresa não deram cumprimento ao dever que lhes era imposto pelo n.º1 do art.º 18.º do CIRE, cfr. art.º 186.º n.º3 al. a) do mesmo diploma legal. Ora, os apelantes não lograram ilidir aquela presunção de culpa grave na omissão de apresentação tempestiva da empresa à insolvência, pois que, por um lado, ficou provado que devido à situação económico-financeira da empresa verificada, pelo menos, nos últimos dois anos, a mesma estava em situação de insolvência. Daí a culpa grave na omissão dos apelantes de apresentação da empresa à insolvência. Segue-se o apuramento, em face dos factos provados nos autos, a verificação do nexo de causalidade entre aquele incumprimento do dever de apresentação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência da empresa, cfr. art.º 186.º n.º 1 do CIRE Perante os factos assentes nos autos, dúvidas não temos de que se provou que a não apresentação à insolvência agravou a situação de insolvência da empresa. Ou seja, o agravamento corresponde, nas concretas circunstâncias do caso, ao que tenha sido efectivamente sofrido pelos credores em consequência do atraso na apresentação à insolvência e que não teria sido produzido se o devedor se tivesse apresentado à insolvência no momento oportuno. Esse prejuízo deverá corresponder a uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a insolvência. “In casu”, o concreto agravamento ocorreu nomeadamente com a prática dos actos de dissipação ou delapidação do património entre a verificação da insolvência e o momento em que um dos credores pediu a declaração da mesma. Se a insolvência tivesse sido declarada em momento oportuno, ter-se-ia evitado tais actos e os credores teriam mais e melhores hipóteses de obter a satisfação dos seus créditos. Neste particular, os ora apelantes não ilidiram a presunção legal de culpa grave e não afastaram o nexo que se consegue estabelecer entre o atraso e a designadamente a perda de parte considerável do parque de máquinas e de outro equipamento pesado da insolvente. Na verdade, dúvidas não restam de que se verifica nexo de causalidade entre a conduta dos apelantes e a situação de agravamento da situação de insolvência da empresa, pois que nas circunstâncias evidenciadas dos autos, era-lhes exigível que tomassem outras precauções, E, ao actuarem de tal forma, agravaram a situação de insolvência, ou seja, no mínimo, os apelantes agiram com negligência grosseira ou culpa grave, contribuindo para o agravamento da situação de insolvência da sociedade, pois que não podiam desconhecer ou ignorar, sem culpa grave, que inexistia qualquer perspectiva séria de melhora da situação financeira da empresa. Assim tal como foi decidido em 1.ª instância, a insolvência da sociedade “C…, SA” é qualificada de culposa, sendo os apelantes afectados por tal qualificação, por força do disposto na al. a) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE.
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Por outro lado, não se pode ignorar que está provado que:- Foram apreendidos bens móveis (veículos automóveis, máquina perfuradora, bombas, equipamentos) de cuja venda resultou o valor de €35.629,75. - Foram reclamados créditos por diversas entidades bancárias, fornecedores e Estado, no valor de global de €1.144.491,82, com datas de vencimento desde à mais de dois anos. - Nos meses de Maio, Junho e Julho de 2012, a insolvente vendeu à sociedade I…, Lda., os bens constantes das facturas n.ºs. 876, 877, 888, 889, 890 e 891, num total de €68.824,75, depositado numa conta aberta em nome da requerida E… e do requerido B…, tendo o dinheiro sido utilizado para fazer pagamentos, essencialmente, a pessoas relacionadas com a insolvente, nomeadamente, a E… e B…. - O administrador e accionista da insolvente, B…, e o accionista da insolvente, F…, foram gerentes da adquirente dos bens supra mencionados, I…, até 22.05.12, data em que cessaram funções de gerente nesta.
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Preceitua o art.º 186.º n.º2 als. a), b), d), f) e g) do CIRE que:“Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: “a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor; b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas; d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto; g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência”. Atentos os factos provados nos autos, é manifesto que os administradores da insolvente efectuaram a venda de parte considerável do património da empresa devedora, designadamente máquinas e outro equipamento pesado, a uma sociedade do mesmo ramo, cujos legais representantes tinham estreitas ligações às pessoas que geriam a insolvente, já que dela fazem ou fizeram parte accionistas ou gerentes da insolvente, bem como seus familiares próximos, deixando na empresa devedora, ora insolvente, apenas equipamento residual e de pouco valor, atento o pouco que vieram a render, em sede de liquidação, para a massa insolvente (cerca de €34.000,00), o que redundou em manifesto prejuízo para a generalidade dos seus credores. Por outro lado, o valor dessas vendas (€68.824,75) acabou por ser depositado numa conta bancária pessoal de uma antiga administradora da insolvente (E…) e de um administrador/acionista da mesma (B…). Esse mesmo dinheiro acabou por vir a ser utilizado para fazer pagamentos essencialmente, a pessoas relacionadas com os administradores da insolvente e que lhes interessavam, nomeadamente, a E… e G…, filho do acionista B…, e a, por exemplo, K…, ex-trabalhador da insolvente, agora ao serviço da I…, compradora dos referidos bens, isto em manifesto prejuízo dos legítimos direitos da generalidade dos credores da ora insolvente. Finalmente não pode ignorar-se que a venda dos referidos bens ocorreu já depois de ter dado entrada em tribunal o pedido de declaração de insolvência da empresa, facto que os administradores desta decerto não ignoravam. Verifica-se, pois, factualidade integrativa das als. a), b), d) e f) do n.º2 do art.º 186.º do CIRE. Pelo que somos de concluir que, tal como se refere na decisão recorrida, “Perante tal quadro, parece-nos que os requeridos, que assumiram a administração da empresa, não cuidaram pelo cumprimento dos seus deveres de gestão criteriosa e ordenada, pelo que, entendemos que a qualificação da presente insolvência deve assumir natureza culposa e afectada por os requeridos”. Improcedem as respectivas conclusões dos apelantes.
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3.ªquestão - Da indemnização.Finalmente dizem os apelantes que o tribunal recorrido recorrida condenou os afectados pela insolvência a indemnizarem os credores da devedora/insolvente no montante dos créditos reconhecidos na sentença de graduação de créditos e não satisfeitos na liquidação, até à força dos seus patrimónios, solidariamente, sem que lançasse mão do disposto no n.º 4 do art.º 189.º do CIRE.
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Resulta da decisão recorrida que os ora apelantes foram condenados a “indemnizarem os credores da devedora/insolvente no montante dos créditos reconhecidos na sentença de graduação de créditos e não satisfeitos na liquidação, até à força dos seus patrimónios, solidariamente”.
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Esta qualificação da insolvência ocorre em momento temporal posterior à entrada em vigor da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril.Ora, preceitua a n.º 2, al. a) do art.º 189.º do CIRE, na redacção dada pela referida Lei, que -“Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve: identificar as pessoas (…) afectadas pela qualificação, fixando, sendo caso disso, o respectivo grau de culpa”. E segundo a al. e) de tal preceito, o juiz deve: “Condenar as pessoas afectadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até à força dos respectivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afectados”. Finalmente, n.º 4 do mesmo artigo estipula que: “Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude do tribunal não dispor dos elementos necessários a calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efectuar em liquidação de sentença”. Temos por assente, e por força da referida norma, que o efeito condenatório decorre directamente da lei. E apenas a fixação do valor das indemnizações devidas está sujeita à apreciação das circunstâncias e vicissitudes do caso concreto. Assim, e contrariamente ao defendido pelos apelantes, o limite indemnizatório legal é fixado no montante dos créditos não satisfeitos e não no valor dos actos individuais e culposos, apurados em concreto, designadamente ao valor dos bens vendidos a terceiros. Sendo que a culpa apurada, “in casu”, culpa grave, legitima a responsabilidade pelos créditos não satisfeitos, e esta é solidária, precisamente para melhor salvaguardar esse objectivo de ressarcimento. A sentença recorrida respeitou este enquadramento jurídico, considerando que o estado actual do processo (porque o administrador de insolvência intentou acções destinadas à resolução dos contratos de vendas de parte considerável do património da insolvente), não permite definir, desde já, o valor que será obtido com a liquidação da totalidade do activo e o valor dos créditos por satisfazer. Pelo que, nessa medida, a 1.ª instância, condenou os apelantes a indemnizarem os credores da insolvente no montante dos créditos reconhecidos na sentença de graduação de créditos e não satisfeitos na liquidação, solidariamente, como impõe a lei, e até à força dos seus patrimónios. Ou seja, deferiu para momento posterior a concreta definição do valor dos créditos não satisfeitos, esclarecendo que o critério a utilizar corresponde ao valor dos créditos julgados verificados e não satisfeitos através dos pagamentos a efectuar no processo. E, por tudo isto, não nos merece censura a decisão recorrida. Improcedem as respectivas conclusões dos apelantes. Sumário – I – Sendo o fundamento da qualificação da insolvência como culposa por parte dos apelantes, a omissão do dever de requerer a declaração de insolvência, tal constitui, nos termos do art.º 186.º n.º 3, al. a) do CIRE, presunção ilidível, mas, não ilidida, “in casu” de culpa grave. II – Tendo os administradores da insolvente efectuado a venda de parte considerável do património da empresa devedora, designadamente máquinas e outro equipamento pesado, a uma sociedade do mesmo ramo, cujos legais representantes tinham estreitas ligações às pessoas que geriam a insolvente, já que dela fazem ou fizeram parte accionistas ou gerentes da insolvente, bem como seus familiares próximos, deixando na empresa devedora apenas equipamento residual e de pouco valor, atento o pouco que vieram a render, em sede de liquidação, para a massa insolvente (cerca de €34.000,00), o que redundou em manifesto prejuízo para a generalidade dos seus credores. E ainda tendo o valor dessas vendas (€68.824,75) acabado por ser depositado numa conta bancária pessoal de uma antiga administradora da insolvente e de um administrador/acionista tendo sido destinado a fazer pagamentos essencialmente, a pessoas relacionadas com os administradores da insolvente e que lhes interessavam, encontram-se reunidos os pressupostos constantes das alíneas a), b), d), f) e g) do n.º2 do art.º 186.º do CIRE. III – O limite da indemnização legal prevista no al. e) do n.º2 do art.º 189.º do CIRE é fixado no montante dos créditos não satisfeitos e não no valor dos actos culposos, concretamente apurados. IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente e em confirmar a decisão recorrida. Custas pelos apelantes. Porto, 2015.01.13 Anabela Dias da Silva Ana Lucinda Cabral Maria do Carmo Domingues |
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