Insolvência, Valor do Incidente, Exoneração do Passivo Restante, Inconstitucionalidade - Acórdão do TRP de 04-11-2013

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
                                                     
430/13.8TBPNF-C.P1
JTRP000
ALBERTO RUÇO

VALOR DO INCIDENTE 
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
INCONSTITUCIONALIDADE

RP20131104430/13.8TBPNF-C.P1
04-11-2013
UNANIMIDADE
S
1
RECLAMAÇÃO
NÃO ATENDIDA
5ª SECÇÃO

ARTº 15º DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
ARTº 313º E 305º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL



I - A norma do artigo 15.º do CIRE, que prevê o valor do activo como critério para a determinação do valor do processo de insolvência e seus incidentes, é inconstitucional quando aplicada à determinação do valor do incidente da exoneração do passivo restante, por infringir o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República. 


II - Afastada a aplicação daquela norma, o valor do incidente da exoneração do passivo restante é, nos termos do artigo 313.º, n.º 1 e 305.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, determinado pelo valor do passivo.


Tribunal da Relação do Porto – 5.ª secção.
Conferência (Reclamação – artigo 688.º do Código de Processo Civil revogado e artigo 643.º do novo Código de Processo Civil).
Processo n.º 430/13.8TBPNF-C do Tribunal Judicial da Comarca de Penafiel – 2.º Juízo.


*

Juiz relator………….Alberto Augusto Vicente Ruço.
1.º Juiz-adjunto……Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto.
2.º Juiz-adjunto…….Ana Paula Pereira de Amorim.


*

Sumário: 



I. A norma do artigo 15.º do CIRE, que prevê o valor do activo como critério para a determinação do valor do processo de insolvência e seus incidentes, é inconstitucional quando aplicada à determinação do valor do incidente da exoneração do passivo restante, por infringir o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República. 


II. Afastada a aplicação daquela norma, o valor do incidente da exoneração do passivo restante é, nos termos do artigo 313.º, n.º 1 e 305.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, determinado pelo valor do passivo.

*

Reclamante…………………..B…, insolvente, residente em Rua …, n.º …, ….-… Penafiel.
Reclamados……………………C…SA. e Outros, identificados nos autos.


*

I. Relatório.



a) A presente reclamação tem por objecto o despacho que não admitiu o recurso interposto pela insolvente relativamente à decisão que lhe indeferiu o pedido de exoneração do passivo restante.



O indeferimento do recurso baseou-se no facto do valor da acção, determinado segundo o critério estabelecido no artigo 15.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, ser inferior ao valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, o que implica a irrecorribilidade do mencionado despacho, nos termos do artigo 678.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.



A reclamante argumenta que o critério estabelecido no artigo 15.º do CIRE torna esta norma inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, como já foi decidido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 328/2012 (DR, II Série, n.º 222, de 16-11-2012).



Devendo atribuir-se ao incidente o valor correspondente ao passivo e não ao activo, daí resultando a admissibilidade do recurso.



b) Não foi apresentada qualquer resposta à reclamação. 



c) Foi proferida decisão no pretérito dia 16 de Setembro no sentido da admissibilidade do recurso com fundamento na inconstitucionalidade da norma do artigo 15.º do CIRE, relativa à determinação do valor do incidente da exoneração do passivo restante, por infringir o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República.



O Ministério Público veio requerer que recaísse acórdão sobre a questão suscitada na reclamação.



O novo Código de Processo Civil permite submeter à conferência esta decisão do relator, como resulta do disposto nos artigos 643.º, n.º 4 e 652.º, n.º 3, ambos do novo Código de Processo Civil, aplicáveis ao caso dos autos por força do disposto no n.º 1, do artigo 5.º, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.



Passa-se, por conseguinte, à análise do objecto da reclamação.



II. Objecto da reclamação.



A questão colocada pela presente reclamação consiste em saber se o critério estabelecido no artigo 15.º do CIRE, relativo à determinação do valor da acção, que coincide com o valor do activo do insolvente, padece de inconstitucionalidade quando aplicado ao incidente de exoneração do passivo restante, por violação do princípio da igualdade proclamado no artigo 13.º da Constituição da República, e se, sendo a resposta positiva, tal critério se deve basear antes no valor do passivo.



III. Fundamentação.



a) Matéria de facto processual.



O valor do activo é de €2.000, 00 euros.



O valor do passivo é de €282.644, 99 euros.



Estes valores resultam do relatório do administrador da insolvência – fls. 39.



b) Apreciação da questão objecto do recurso.



1 - Nos termos do n.º 1, do artigo 24.º, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), na redacção do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, «Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000 e a dos tribunais de 1.ª instância é de (euro) 5000».



No que respeita à admissibilidade dos recursos, o n.º 1 do artigo 678.º do Código de Processo Civil, dispunha que «O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa».



Por sua vez, o artigo 15.º do CIRE dispõe que, «Para efeitos processuais, o valor da causa é determinado sobre o valor do activo do devedor indicado na petição, que é corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real».



No caso dos autos, sendo o valor do activo €2.000,00 euros, a decisão reclamada não será recorrível, salvo se a norma do artigo 15.º do CIRE for inconstitucional quando aplicada ao incidente da exoneração do passivo restante.



Vejamos então a questão acima enunciada.



2 - Dada a clareza da exposição sobre o tema, constante acórdão do Tribunal Constitucional n.º 328/2012 (DR, II Série, n.º 222, de 16-11-2012), mencionado pela reclamante, passa-se a transcrever a parte que se afigura mais importante para a compreensão da questão colocada.



Diz-se no acórdão:


«Porém, a aplicação irrestrita desse mesmo critério para efeitos de determinação de recorribilidade das decisões relativas à exoneração do passivo restante conduz a um resultado contrário à própria razão que justifica a irrecorribilidade das decisões proferidas em causas de valor inferior à alçada do tribunal de que se recorre. 


Assim, um devedor cujo ativo seja superior à alçada e a quem seja indeferida pretensão de “exoneração de passivo restante” poderá recorrer da decisão de indeferimento qualquer que seja o montante desse passivo (embora, na prática, deva ser superior ao ativo porque isso está implícito na situação da insolvência). Porém, um devedor cujo ativo seja inferior à alçada ficará impedido de recorrer de decisão similar, mesmo que pretenda impugnar uma decisão que lhe indefira pretensão de exoneração de passivo superior à alçada do tribunal de 1ª instância. Sujeitos em identidade de situação no que à pretensão material e de tutela jurisdicional respeita recebem tratamento diverso. Isto resulta de, na solução normativa questionada, se abstrair da finalidade especial do incidente, que é distinta da finalidade típica imediata do processo de insolvência, recorrendo-se a um fator estranho à utilidade económica específica do pedido que é objeto dessa decisão. Com esta interpretação, interessados a quem a decisão é tão ou mais desfavorável ficam impedidos de recorrer em função do valor da causa determinado pelo ativo em liquidação, enquanto outros, em idêntica ou menos desfavorável situação, gozarão da faculdade de recorrer perante decisões similares. E essa diferenciação resulta apenas de atribuição de relevância a um fator (o valor do ativo) que é estranho à finalidade legal do incidente. 



Assim, a escolha desse fator para determinação do valor do incidente de exoneração do passivo restante, na sua relação com a alçada do tribunal de 1ª instancia e a consequente recorribilidade das decisões nele proferidas, não pode deixar de considerar-se critério arbitrário ou ostensivamente inadmissível, por tratar desigualmente sujeitos em posição idêntica naquilo que pode justificar o acesso ao tribunal superior. Embora do artigo 20.º da CRP não decorra o direito a um 2º grau de jurisdição em processo civil e não seja constitucionalmente proibida a adoção do valor da causa como critério de determinação da admissibilidade do recurso, é contrário à proibição de arbítrio um critério de determinação do valor para efeitos de relação da causa com a alçada do tribunal que conduza a que sujeitos afetados com a mesma intensidade por decisões judiciais sejam colocados em posição diversa quanto à admissibilidade de impugnação da respetiva decisão desfavorável».



Com base nestas razões, o Tribunal Constitucional decidiu «Julgar inconstitucional, por violação do princípio da igualdade consagrado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, a norma que resulta das disposições conjugadas do artigo 15.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, e do n.º 1 do artigo 678.º do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de que, no recurso de decisões proferidas no incidente de exoneração do passivo restante em processo de insolvência, o valor da causa para efeitos de relação com a alçada do tribunal de que se recorre é determinada pelo ativo do devedor».



Adere-se a este entendimento.



Com efeito, o critério do valor do activo é adequado, em geral, para determinar o valor da acção e incidentes, olhando ao ponto de vista dos credores, pois é o valor do activo que baliza a satisfação máxima que os credores poderão obter no âmbito do processo.



Porém, o incidente da exoneração do passivo restante é uma medida que se destina a proteger os insolventes e não os credores.



Sendo assim, para que todos os insolventes possam estar no mesmo patamar de protecção (em situação de igualdade), o critério do valor do activo torna-se arbitrário na medida em que este critério não tem qualquer ligação material com os interesses a decidir no incidente da exoneração do passivo restante.



É o passivo do insolvente e não o activo que entra em relação com os interesses relativos à exoneração do passivo, pelo que o critério para determinar o valor do incidente deve ser o do valor dos interesses que se decidem no incidente, isto é, os interesses ligados ao passivo.



Ao eleger-se o critério do activo, sem ligação com os valores em jogo neste incidente, o critério torna-se, por isso, arbitrário e pode colocar, como é o caso dos autos, em situação diversa, quanto à utilização do direito ao recurso, situações materialmente iguais, como é o caso de dois insolventes cujo passivo seja semelhante, mas o activo de um seja superior ao do tribunal de 1.ª instância e o outro seja inferior.



É nesta dimensão que ocorre a infracção ao princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República, onde se proclama, no seu n.º 1, que «Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei».



Cumpre, por conseguinte, recusar a aplicação da norma do artigo 15.º do CIRE relativamente à determinação do valor do incidente da exoneração do passivo restante, por infringir o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República e ser, por isso, inconstitucional.



O valor do incidente de exoneração do passivo restante é, nos termos do artigo 313.º, n.º 1 e 305.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, determinado de acordo com o valor dos interesses em causa, ou seja, de acordo com o valor do passivo do insolvente.



No caso dos autos, o valor do passivo do insolvente é superior ao da alçada do tribunal da comarca, razão pela qual se deve admitir o recurso.



IV. Decisão.



Considerando o exposto, rejeita-se a aplicação da norma constante do artigo 15.º do CIRE ao incidente de exoneração do passivo restante, por ser inconstitucional, nos termos supra referidos, e aplicam-se ao caso as normas dos artigos artigo 313.º, n.º 1 e 305.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil.



Julga-se a reclamação procedente, revoga-se o despacho reclamado e admite-se o recurso interposto pela insolvente.


Solicite-se oportunamente a remessa do processo nos termos do artigo 688.º, n.º 6 do Código de Processo Civil.
*

Porto, 4 de Novembro de 2013.
Alberto Ruço
Correia Pinto
Ana Paula Amorim

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