Apesar do administrador da insolvência não ter cumprido a promessa de venda, a sociedade por quotas beneficiária da promessa não goza nem do crédito do dobro do que prestou nem do direito de retenção. TRP, Ac. de 18 de Novembro de 2013

Tribunal da Relação do Porto, Acórdão de 18 Nov. 2013, Processo 1150/12

Relator: RITA ROMEIRA.
: 1150/12
Jurisdição: Cível
JusJornal, N.º 1828, 7 de Janeiro de 2014
JusNet 5902/2013
Apesar do administrador da insolvência não ter cumprido a promessa de venda, a sociedade por quotas beneficiária da promessa não goza nem do crédito do dobro do que prestou nem do direito de retenção
CONTRATO-PROMESSA. INSOLVÊNCIA. O princípio geral quanto aos negócios ainda não cumpridos à data da declaração de insolvência é o de que o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento. Trata-se de um direito potestativo do administrador, orientado pelo vetor exclusivo do interesse da massa insolvente, valendo integralmente no caso de se estar perante um contrato-promessa com natureza meramente obrigacional, como nos autos. Com efeito, tendo em conta a especificidade do processo insolvencial, a opção do administrador pelo não cumprimento de uma promessa sem eficácia real não se traduz num facto ilícito gerador da obrigação de indemnização, e, deste modo, a sociedade beneficiária da promessa de venda com natureza meramente obrigacional, não goza do direito à indemnização de recebimento de outro tanto do que prestou como sinal sobre a coisa traditada. E tampouco detém o direito de retenção sobre o imóvel prometido, apesar dos imóveis prometidos vender lhe terem sido traditados, porquanto tal direito deverá ser apenas atribuído quando o promitente-comprador seja um consumidor.
Disposições aplicadas
TEXTO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO

Nos presentes autos para verificação de créditos, que correm os seus termos por apenso ao processo de insolvência n.º 1150/12.6TBPNF, em que foi declarada insolvente C..., SA veio o administrador de Insolvência apresentar a lista de todos os credores por si reconhecidos, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 129º nº 1 e 2 do CIRE (JusNet 22/2004).
De acordo com a lista apresentada pelo administrador de Insolvência (fls. 24 a 28/37 a 42), foram reclamados e reconhecidos, entre outros, o crédito de B..., Lda, no montante de EUR 392.308,00, cfr. consta a fls. 25.
O administrador apresentou ainda a lista de créditos reclamados, mas não reconhecidos, nos termos que constam a fl. 43.
A lista apresentada foi impugnada, entre outros, pela credora B..., Lda, com fundamento na incorrecção do montante reconhecido e da qualificação do respectivo crédito reconhecido, que no seu entender deve ser garantido, por força do direito de retenção que entende beneficiar, cfr. consta a fls. 166 a 171, concluindo com o pedido de que seja julgada procedente a lista de créditos reconhecidos pelo Senhor Administrador, ser rectificada em conformidade e o mencionado crédito ser reconhecido, verificado e graduado: a) como crédito com garantia real preferente no montante de EUR 784.616,00; b) ou e caso assim não se entenda, como crédito comum no valor global de EUR 450.323,90.
O administrador da insolvência veio responder a todas as impugnações, não aceitando, no essencial, o teor das impugnações apresentadas, conforme fls. 191 ss., concretamente quanto à impugnação de crédito da B..., nos termos que constam a fls. 196, concluindo que deverá ser reconhecido à impugnante o montante global de EUR 414.578,20 graduado no lugar que lhe pertence, isto é, como crédito comum.
Foi junta prova documental pelos credores impugnantes.
Realizou-se a tentativa de conciliação prevista no art. 136º do CIRE (JusNet 22/2004), não tendo ocorrido acordo sobre a impugnação da credora B..., Lda.
Em face do exposto supra, prosseguiram os autos, conforme ordenado a fls. 292, tendo sido proferido despacho saneador tabelar e feita a selecção da matéria de facto, nos termos que constam a fls. 305 e ss., sem reclamação.
Foi realizada a audiência de julgamento, relativamente à credora que não houve acordo, B..., Lda, tendo a matéria de facto controvertida sido respondida nos termos que constam a fls. 319, sem reclamação.
A seguir foi proferida sentença que a fls. 321 e ss. decidiu:
"Em face do exposto e nos termos das disposições legais supra citadas, reconheço o crédito de B..., Lda, no montante de 414.578,20 euros que graduo como crédito comum.".
*
Inconformada a impugnante interpôs recurso a fls. 405 e ss., cujas alegações terminou com as seguintes CONCLUSÕES:
1- A recusa do cumprimento dos contratos promessa a que se refere o artigo 102º nº1 do CIRE (JusNet 22/2004) equivale ao incumprimento definitivo pela insolvente;
2- A extinção contratual operada com a ora apelante sempre será imputável à insolvente, que se colocou numa situação de não satisfazer pontualmente as suas obrigações;
3- E ainda que assim não se entenda, sempre a impossibilidade de cumprimento procederia de culpa sua, conforme prevê e estipula o artigo 799º nº1 do Cód. Civil;
4- Os contratos promessa de compra e venda , em que tenha havido tradição da coisa, mesmo os dotados de eficácia obrigacional, conferem ao promitente comprador o direito de retenção sobre as fracções objecto do contrato prometido;
5- Por força do art. 755, nº1, al. f) do C.C., o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de um direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, goza de direito de retenção pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte - art. 442 do C.C..
6- Os pressupostos desse direito de retenção são, a existência de promessa de transmissão ou de constituição de direito real, a entrega da coisa objecto do contrato promessa e a titularidade, por parte do beneficiário, de um crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento definitivo do contrato promessa, como sucede nos presentes autos.
7- A ideia de imputabilidade deve ser entendida, em sede de insolvência, no sentido de "ter dado causa ", "ter motivado".
8- Outra interpretação poria em em causa direitos consagrados constitucionalmente, nomeadamente a protecção dos interesses económicos do promitente comprador, com tradição da coisa, que se traduzem na garantia, em caso de insolvência, de ver salvaguardado, com base no direito de retenção, o pagamento preferencial sobre os demais credores, pelo produto de venda da coisa devida.
9- Na impugnação da lista de créditos a ora apelante aduziu os seus argumentos bem como arrolou prova, nomeadamente a documental já constante dos autos (e junta em sede de reclamação de créditos), assim como protestou juntar testemunhas;
10- Tal menção não pode precludir o direito da parte na sua audição, tanto mais que as testemunhas tinham que ser apresentadas pela parte, e foram, e não excediam os limites previstos no artigo 789º do Cód. Proc. Civil, não se podendo aceitar a afirmação de que tal configura a não junção de qualquer prova!!
11- Consubstanciando a sua rejeição nestes termos uma violação do direito da impugnante fazer prova dos factos por si alegados, e em devido tempo manifestado, igualmente enquadrável na demissão do poder instrutório do Juiz que simplesmente se socorreu de um formalismo e rigor excessivo para rejeitar prova testemunhal, que tempestivamente se protestou juntar, desvirtuando-se assim o sistema legalmente previsto de preclusões processuais.
12- Ora, a prolação do despacho nos termos e com os fundamentos expostos, vedou à ora apelante um essencial expediente processual, representativo do corolário do princípio de igualdade de armas e do contraditório processual, extremamente lesivo do seu direito de defesa.
13- Tudo, sem prejuízo do princípio do inquisitório, especialmente consagrado no artigo 11º do CIRE (JusNet 22/2004), ao qual acresce o poder/dever que a lei atribui ao juíz de, oficiosamente até, e para descoberta da verdade material, ordenar todas as diligências que considere necessárias para o apuramento da verdade dos factos.
14- Decidindo errada e injustamente, e em clara violação do disposto nos artigos 11º, 25º, 46º nº1, 102º, 104º, 106º e 139º do CIRE, 442º, 754º, 755º nº1 al. f), e 759º do Código Civil, 3º, 265º, 265º-A e 266º do Cód. Proc. Civil.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicável deve, e tendo em consideração o supra exposto:
a/ ser revogada a, aliás douta, sentença;
b/ e substituída por, aliás douto, acórdão que contemple as conclusões supra expressas, nomeadamente reconhecendo e graduando o crédito da ora apelante como garantido por direito de retenção e preferencial sobre o crédito hipotecário.
pois que assim será feita INTEIRA JUSTIÇA
Foram apresentadas contra-alegações pela Massa Insolvente que terminaram com as seguintes CONCLUSÕES:
1- A douta sentença não merece qualquer censura.
2- Não há incumprimento definitivo do contrato promessa, mas mera recusa do seu cumprimento por parte do Sr. Administrador de Insolvência, pelo que, as consequências da recusa do cumprimento do contrato promessa por parte do Sr. Administrador são as previstas no art. 102º do CIRE (JusNet 22/2004).
3- O douto despacho que indeferiu a prova testemunhal foi objeto de recurso autónomo e separado do presente, pelo que, tal matéria não pode aqui ser apreciada,
4- Sempre, nos termos do disposto no 25º, nº 2 do CIRE, por remissão expressa do art. 134º nº1, que TODOS os meios de prova devem ser oferecidos pelo impugnante - o que não foi feito.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Ter-se-á em conta que o teor das conclusões define o âmbito do conhecimento deste tribunal ad quem.
Quanto à matéria das conclusões 9ª a 13ª, pese embora, a sua alusão neste recurso por parte da apelante, o seu conhecimento não é de efectuar neste recurso, uma vez que o recurso interposto do despacho de não admissão de prova foi autuado em separado, conforme douto despacho de fls. 448-A.
Assim, a única questão a decidir é saber se houve incumprimento definitivo do contrato promessa imputável à recorrida e, por via disso, o crédito reconhecido à recorrente goza de direito de retenção, devendo ser graduado à frente dos créditos comuns, relativamente aos imóveis que lhe foram prometidos em venda no contrato celebrado entre as partes.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A) OS FACTOS:
1. Com data de 22 de Julho de 2010, entre a insolvente C..., SA e a credora B..., Lda foi celebrado acordo escrito denominado "Resolução de Contrato de Empreitada, Dação em Cumprimento e Contrato-Promessa de Compra e Venda", nos termos e com as cláusulas constantes do documento das fls. 300 a 304, cujo conteúdo se dá por reproduzido.
2. Na data da celebração de tal acordo, foram entregues à credora B..., Lda as chaves dos imóveis contemplados no mesmo documento, que os ocupou imediatamente.
3. Neles efetuou obras, com dispêndio de materiais e mão-de-obra.
4. Publicitando e negociando a sua venda e mostrando-os a interessados na sua aquisição.
5. Passado mais de um ano desde a celebração do acordo referido em A, a insolvente não diligenciou pela obtenção das licenças referentes aos imóveis em causa, nem renovou os registos provisórios de aquisição a favor da credora B..., Lda.
6. A insolvente igualmente não executou as obras a que se tinha comprometido.
7. Nem procedeu ao cancelamento das inscrições hipotecárias que incidem sobre os imóveis.
B) O DIREITO
A decisão recorrida entendeu e concluiu, atenta a factualidade apurada, que não ocorreu incumprimento definitivo do contrato prometido, considerando que a recorrida insolvente apenas entrou em mora e a simples mora não confere ao comprador o direito de retenção, pelo que reconheceu o crédito da recorrente, apenas, como crédito comum.
A recorrente discorda do decidido e defende que a recusa do cumprimento dos contratos promessa a que se refere o art. 102º, nº1, do CIRE (JusNet 22/2004) (diploma a que respeitarão todos os artigos a seguir referidos sem menção de origem) equivale a incumprimento definitivo pela insolvente e defende que os contratos promessa de compra e venda, em que tenha havido tradição da coisa, mesmo os dotados de eficácia obrigacional, conferem ao promitente comprador o direito de retenção sobre as fracções objecto do contrato prometido.
Em nosso entender não lhe assiste razão, não nos merecendo qualquer censura a sustentação da bem fundamentada sentença recorrida.
Senão vejamos.
Como resulta da matéria de facto que foi dada como provada no Tribunal "a quo" e que não foi objecto de impugnação, o contrato outorgado entre a recorrente e recorrida em 22 de Julho de 2010, junto a fls. 294 e ss., designado "Resolução de Contrato de Empreitada, Dação em Cumprimento e Contrato Promessa de Compra e Venda" ainda não se encontrava cumprido por parte de nenhuma das partes outorgantes quando foi declarada a insolvência da recorrida.
E, como é sabido, o princípio geral quanto aos negócios ainda não cumpridos à data da declaração de insolvência é o de que o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento, cfr. nº 1, do art. 102º. Tal opção resolve-se num direito potestativo (e não numa simples actuação ad libitum) do administrador, orientado pelo vector exclusivo do interesse da massa insolvente (e, em consequência, do interesse dos credores).
E, como se mostra confirmado através do disposto no art. 106º, a regra referida vale integralmente para o caso de se estar perante contrato-promessa com natureza meramente obrigacional, como é o caso dos autos.
Assim, há que ter em atenção, desde logo, que tendo em conta a especificidade do processo insolvencial a lei, no caso de promessa sem eficácia real, como que transforma os deveres que, normalmente, decorreriam para o promitente devedor, caso não fosse a declaração de insolvência, sem que o administrador possa ser visto como estando vinculado ao cumprimento da promessa, como se fora um mero sucessor do devedor. Ao contrário, o administrador funciona como um representante da massa insolvente e, desse modo, defensor dos interesses desta.
Donde há que retirar imediatamente a conclusão que a opção do administrador pelo não cumprimento não se traduz num facto ilícito gerador da obrigação de indemnização, como normalmente aconteceria no caso de não cumprimento da promessa por parte do devedor.
Esta opção do administrador, apenas, produz os efeitos previstos no nº 5 do art. 104º, "ex vi" do nº 2 do art. 106º e, no nº 3 alínea c) do art. 102º. Esta afirmação deve ser vista como reforçada pelo que dispõe o art. 119º, que atribui carácter imperativo às normas acabadas de referir.
Daqui resulta que está afastada a aplicação do regime do sinal conforme vem referido no art. 442º do Código Civil, (CC) precisamente porque não é compatível com o regime específico fixado naquelas normas, artigos 102º e seguintes.
Não se podendo assim, acolher o entendimento da recorrente, ao insurgir-se contra a douta decisão recorrida que decidiu pela não aplicação ao caso do disposto no art. 442º, referido.
E, se não tem aplicação o disposto no art. 442º, do CC, também não podemos ter como representada a existência de um direito de retenção a favor da recorrente, promitente-compradora no contrato em causa, primeiro porque esse efeito não está previsto no mencionado art. 102º para a recusa do cumprimento por parte do administrador, depois porque, ao contrário do que se exige na al. f) do art. 755º do CC, não estamos perante um crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, no caso a contratante, declarada insolvente.
Assim, a não atribuição da garantia de retenção ao promitente-comprador encontra-se, de acordo com este entendimento, em conformidade com o "princípio par conditio creditorum que enforma todo o regime legal da insolvência", cfr. Ac. da RG de 14.12.2010, (que temos vindo, com a devida vénia, a seguir de perto) confirmado pelo Ac. do STJ de 14.06.2011, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
Ora, aplicando estas regras ao caso vertente, não temos senão de concluir que a Autora, beneficiária de uma promessa de venda com natureza meramente obrigacional, não goza nem do direito à indemnização fixada no art. 442º do CCivil (recebimento de outro tanto do que prestou como sinal), nem do direito de retenção sobre a coisa traditada.
Assim, não merece qualquer crítica a decisão recorrida, ao graduar o crédito reconhecido à recorrente como crédito comum, nem a mesma violou qualquer dispositivo legal, concretamente, os referidos pela recorrente.
Improcedem, face ao exposto as conclusões 1ª a 7ª e, improcede de igual modo a conclusão 8ª, uma vez que, salvo o devido respeito, por diferente opinião, não se verifica a violação de qualquer direito constitucionalmente consagrado.
Pois que, no que ao direito de retenção em geral diz respeito, importa considerar que a alínea f) do nº 1 do artigo 755º do CC não existia no texto primitivo deste diploma legal, tendo sido introduzida pelo Decreto-Lei 236/80, de 18 de Julho (JusNet 10/1980), com o objectivo, expresso no respectivo preâmbulo, "de reforçar a posição jurídica do promitente-comprador, especialmente no campo das transacções de imóveis urbanos para habitação".
Com esta norma visou-se, a tutela eficiente do promitente-comprador, especificamente quando o contrato-promessa diz respeito a edifícios ou fracções autónomas para habitação própria daquele. O reconhecimento deste direito tem fundamento no facto de a constituição de sinal e a tradição da coisa terem "subjacente uma forte confiança na firmeza ou concretização do negócio", cfr. Almeida Costa in "Contrato-Promessa: uma síntese do regime vigente", 8ª ed., pág. 73.
O direito de retenção atribuído ao promitente-comprador, reveste assim um carácter marcadamente social, de tutela do promitente adquirente, face ao risco real de o promitente adquirente vir a recusar o cumprimento por ser economicamente vantajoso recusar a celebração do contrato definitivo, e pagar a indemnização correspondente, se a perda fosse compensada pela valorização que o imóvel, tivesse, eventualmente, sofrido.
Esta tutela é ainda reforçada por força da disposição legal contida no n.º 2 do artigo 759º do Código Civil, que confere ao titular do direito de retenção a prevalência sobre uma hipoteca anteriormente registada - o que significa que, no concurso entre o crédito do promitente-comprador e o do credor hipotecário, o primeiro será graduado em primeiro lugar, na execução ou na insolvência.
Deste modo, procurou-se proteger de forma eficiente o promitente-comprador, evitando o prejuízo que para ele acarretaria a prevalência do crédito hipotecário sobre o seu crédito, conduzindo-o tanto a perder o bem objecto do contrato como o sinal prestado.
Sobretudo por força desta norma, a atribuição do direito de retenção ao promitente-comprador tem sido alvo de diversas críticas, vejam-se, entre outros, Pires de Lima e Antunes Varela in "Código Civil Anotado", Vol. I, 4ª ed., Revista e actualizada, pág. 778 e Salvador da Costa in "O Concurso de Credores", 3ª ed., pág. 220.
Refira-se, porém, que o Tribunal Constitucional não julgou organicamente inconstitucionais as normas dos Decretos-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho (JusNet 10/1980), e 379/86, de 11 de Novembro (JusNet 44/1986), respeitantes ao direito de retenção, e não julgou materialmente inconstitucionais as normas constantes do nº 3 do artigo 410º e alínea f) do nº 1 do artigo 755º, ambas do CC, na redacção que resulta daqueles diplomas, nos termos da qual o direito de retenção do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa prevalece sobre a garantia hipotecária registada em data anterior à referida tradição, posição que foi sucessivamente reafirmada por este Tribunal, cfr. Acórdãos 374/03, de 15 de Julho (JusNet 7090/2003)594/03, de 3 de Dezembro (JusNet 7309/2003) e 356/04, de 19 de Maio (JusNet 6780/2004).
Neste enquadramento, importa ainda ponderar o teor do Preâmbulo do Decreto-Lei 379/86, de 11 de Novembro (JusNet 44/1986), diploma que transferiu a previsão do direito de retenção do promitente-comprador para o contexto dos casos especiais de atribuição deste direito, mediante a adição de uma nova alínea ao n.º 1 do artigo 755º do Código Civil, na medida em que explicita a intenção do legislador ao consagrar o direito de retenção do promitente-comprador, discorrendo sobre os interesses em confronto e explicando a tomada de posição do legislador.
Porque relevante, transcreve-se o trecho que pensamos ser fundamental à compreensão do verdadeiro alcance da norma:
"O problema só levanta particulares motivos de reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, maxime tomados de instituições de crédito. Ora, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada, cfr. art. 759º, n º 2, do CC. Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos. Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras.".
Donde se vê que o reconhecimento do direito de retenção surge, como uma medida de defesa do promitente-comprador considerado como parte débil do contrato, na medida em que, não dispondo de qualquer meio eficaz para fazer cumprir a promessa, a sua posição no âmbito do mecanismo contratual se vê muito fragilizada.
O legislador optou por consagrar a atribuição deste direito ao promitente-comprador, em prejuízo dos interesses dos credores hipotecários - mas sempre, sublinhe-se, tendo como alvo subjectivo um credor específico - o consumidor. Defendem esta posição Luís Miguel Pestana de Vasconcelos in "Direito de Retenção contrato-promessa e insolvência", Cadernos de Direito Privado, nº 33, Jan./Mar. 2011, págs. 20 e ss. e Menezes Cordeiro in "Tratado de Direito Civil", Vol. II, pág. 401, entre outros.
A atribuição do direito de retenção ao promitente-adquirente tem, assim, um carácter marcadamente social, sendo que na avaliação da preponderância entre o "alcance social" da norma e "os inconvenientes perante a banca, o legislador optou por dar a primazia aos aspectos sociais", cfr. Menezes Cordeiro, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 57, Abril, 1997, págs. 547 e ss. e pág. 551.
O legislador procurou proteger o promitente fiel de riscos concretos e reais: por um lado, "o do incentivo ao não cumprimento se fosse economicamente mais vantajoso recusar a alienação e pagar o sinal em dobro, caso a valorização que o imóvel, entretanto, tivesse sofrido compensasse essa perda", cfr. Luís Miguel Pestana de Vasconcelos in "Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência", já referido, pág 7, por outro lado, o da privação do bem resultante da postergação do promitente-comprador em sede de graduação de bens na execução ou insolvência do promitente-alienante.
Também na jurisprudência de há muito que se consente neste entendimento. Escreveu-se o seguinte no Ac. do STJ de 6.11.2001(JusNet 6114/2001), acessível in www.dgsi.pt., "O legislador, ao contemplar o direito de retenção do promitente comprador de fracção autónoma, com tradição da coisa, procedeu na lógica da tutela do consumidor, o que constitui um imperativo constitucional em que o legislador deu primazia aos aspectos sociais e que, no conflito entre as instituições de crédito credoras do promitente vendedor e os interesses dos promitentes compradores com tradição, prevalecem justificadamente os segundos.", ver neste mesmo sentido, entre outros, os Acs. do STJ de 27.11.2007 (JusNet 6692/2007) e de 14.06.2011 (JusNet 3285/2011), o Ac. desta Relação de 31.03.2009 e da RG de 25.09.2012, todos acessíveis no sítio da internet supra referido.
Na sequência deste enquadramento, entendemos que o direito de retenção deverá ser atribuído apenas quando o promitente-comprador é um consumidor.
Ora, nos termos do n.º 1 do artigo 2º da Lei nº 24/96 de 31 de Julho (JusNet 53/1996) (Lei de Defesa do Consumidor), entende-se por consumidor "todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços, ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios", conceito que aqui adoptamos.
Aderimos, assim, ao entendimento de L. Miguel Pestana de Vasconcelos in "Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência", já citado, pág. 21, segundo o qual "o art. 755.º, n.º 1, alínea f), é uma norma material de protecção do consumidor e deve ser interpretada restritivamente para o beneficiar somente a ele".
No caso em apreço, o promitente-comprador, sendo uma sociedade por quotas, não é um consumidor, tal como este é definido no art. 2º, nº 1, da Lei nº 24/96 de 31 de Julho (JusNet 53/1996), sendo que a opção legislativa foi a de conferir, como já referido, primazia à tutela dos interesses dos consumidores na protecção da confiança na consolidação de negócios jurídicos, no confronto com os direitos das instituições de crédito e inerente confiança do registo predial.
Conclui-se, portanto, que não existe qualquer violação de direitos consagrados constitucionalmente, nomeadamente o princípio da igualdade explicitado no art. 13º da Constituição (JusNet 7/1976), pois são diversas as situações de um promitente-comprador que é consumidor ou de um promitente-comprador que é uma sociedade comercial, justificando-se plenamente, pela razões acima apontadas, uma diversidade de tratamento em relação a cada um deles, nem de modo nenhum, como refere a recorrente, do direito de protecção dos interesses económicos do promitente comprador, com tradição da coisa.
Ora, das alegações da recorrente, que é uma sociedade comercial por quotas e não um consumidor, nos termos atrás definidos, não se vislumbram argumentos que convençam alterar o entendimento deste Tribunal sobre a questão em apreço.
Assim, improcede de todo a apelação, sendo de confirmar a sentença recorrida.
*
Sumário:
I - O promitente-comprador de coisa imóvel que obteve a traditio, não goza, no actual direito insolvencial (CIRE), dos direitos reconhecidos pelo Código Civil, no caso de o negócio não se encontrar totalmente cumprido por ambas as partes, não sendo aplicável na insolvência o art. 442º, nº 2, do Código Civil, e por isso, também não dispõe o promitente-comprador do direito de retenção, nos termos do art. 755º, nº1, f) do Código Civil.
II - O disposto no art. 119º do CIRE (JusNet 22/2004), atribui carácter imperativo aos art.s 102 e seguintes do mesmo diploma e, por isso, afasta a aplicação do regime do sinal conforme vem referido no art. 442º do Código Civil, precisamente porque não é compatível com o regime específico fixado naquelas normas, art.s 102º e seguintes.
III - Tendo o administrador da insolvência optado por não cumprir a promessa de venda, o beneficiário da promessa, uma sociedade por quotas, que passou sinal não goza sobre a massa insolvente de crédito do dobro do que prestou, nem goza de direito de retenção, apesar dos imóveis prometidos vender lhe terem sido traditados, sendo um credor comum da insolvência.
*

III - DECISÃO

Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
*
Porto, 14 de Outubro de 2013
(processei e revi - art. 138º/5 CPC)
Rita Romeira
Manuel Domingos Fernandes
Caimoto Jácome

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